quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

MODERNISMO, 90 ANOS – IV

-- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois 

 Futebol: uma (grande) contradição dos modernistas
 Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, que numa carta a Godofredo Rangel, em 11.07.1904, escrevia: "(...) E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na  rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol –‘Palmeiras !’ Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na Vida intensa o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul:’Jacques, tu es un âne’. Seja como for,  asseguro-te que o futebol apaixona e contunde".O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".

Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo.  Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito -- apenas esparsa  e timidamente o registravam em seus escritos:  quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920   em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia -- registrando-o em poemas, nos roteiros dos dois primeiros filmes do cinema brasileiro sobre futebol, “Alvorada de glória” e “Campeão de futebol”,ambos em 1931,  e na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade” -- referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp  -- em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol -- e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado --não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”, e pela crônica “Notas sobre a visita do Bologna F.C” , mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, entidade poliesportiva  -- o completo envolvimento de Francisco Rebolo -- artista plástico e jogador de futebol, autor de “Jogadores de futebol” (1936)  , e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro -- a motivação de Candido Portinari --  em duas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui” (1933) -- dos artistas Rodolfo Chambelland (“Menino com bola”, 1914), Ismael Nery (“Em caminho do goal”,1917), André Lhote (“Football”,  1933) , Djanira (“Futebol”, 1948),  Antônio Gomide (“Futebol no morro”, 1959).

O futebol posteriormente encontraria acolhida  em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão; ‘receptividade’ em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes. – e especialmente em dois grandes intelectuais, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser. O alemão Rosenfeld em fins da década de 1930 auto-exilou-se  no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol:  no texto “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que “em terras brasileiras (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação(...)”. Flusser, filófoso tcheco, radicado em São Paulo na década de 1940, debruçou-se sobre o futebol por via do tema da alienação, que inclusive intitulou brilhante ensaio no qual contrapõe-se  ao  conceito de que o futebol exerceria somente uma função evasiva da realidade,  ao contrário, vindo a constituir-se num  elemento, isso sim, de engajamento por ter o futebol extravasado de sua seara original, como esporte e prática esportiva, para praticamente todas escalas -- sociais, culturais, antropológicas,sociológicas, políticas, econômicas ; chegou a formular o conceito de  “um novo homem brasileiro, um homo ludens”.

Intelectuais paulistanos, paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo, Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva.
O futebol  interpretado sob a ótica da representatividade nacional, uma forma de se chegar a concepções sobre a brasilidade,  colocando- o  também no terreno da cultura popular, sob o projeto  de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Refletiam e retratavam emblematicamente as tradução e  decodificação sofridas pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular.

Relevante observar especificamente o relacionamento dos intelectuais modernistas com o futebol, recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista). O fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passou muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo, com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido, provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira”; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional, uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte, ao entrar em cena os regionalistas oriundos do Nordeste, a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam  tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Gilberto Freyre, por exemplo, em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.

O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas,  quando não, com explícita antipatia, diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular,  possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual.

De  Mário de Andrade e Oswald de Andrade o futebol recebeu imediatamente crítica e repúdio – mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald , sem nunca alcançar porém o engajamento empolgado . Mario de Andrade o  via como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, não deixa de realçar em algumas crônicas a violência e o teor elitista do futebol permeado de expressões estrangeiras (a la Lima Barreto), embora na crônica “Brasil-Argentina”, em 1939, acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação[ a relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva , acionando a idéia de uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas nas décadas de 1930 e 1940], chegando a adquirir – em uníssono com a tese de Oswald – um caráter antropofágico onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais.

Oswald de Andrade, por sua vez, referiu-se  com uma  certa simpatia – carregada de  ironia – nos versos do poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, em que refere-se à excursão do Paulistano à Europa,em 1925, e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico sobre a violência do futebol;  a rigor, sempre combateu o futebol, como “veículo de alienação”, “ópio do povo”, inclusive elegendo para este confronto de idéias (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto)  José Lins do Rego– embora mais  tarde  fosse ligar-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...
        
Impõe-se, de resto, a especulação reflexiva sobre duas instâncias do mesmo núcleo de questão: primeira, por que o futebol em São Paulo, a cidade natal do introdutor do futebol  no Brasil, a cidade onde fundou-se  o primeiro clube de futebol do País, onde realizou-se o primeiro campeonato organizado de futebol, a cidade berço do ‘futebol de rua, de terreno baldio’, a cidade que produziu o primeiro craque do futebol brasileiro, não teve já em seus primórdios ,por parte de seus intelectuais, a mesma acolhida entusiástica como, por exemplo,  no Rio de Janeiro? E depois, como avaliar o comportamento dos modernistas — da “primeira, segunda e terceira fases”  — com relação ao futebol ? Entende-se que os modernistas da primeira fase tenham visto no futebol, em seu início de implantação no Brasil, um elemento elitista, “burguês e estrangeirista, alheado dos aspectos considerados essenciais e originais da cultura brasileira”—mas por que, depois da avassaladora popularização do futebol, transformado a partir da década de 1930 (o ano de 1938 como taxativo ponto de inflexão) em ‘símbolo de identidade nacional’, não se engajaram em sua aceitação, com o entusiasmo esperado, como elemento essencialmente ligado a seus ideais de nacionalidade, ou pelo menos não o encararam devidamente como um instrumento para chegar às suas concepções sobre a brasilidade, a exemplo do que tinham feito ao acolher, por exemplo, o folclore e a música popular ? O futebol tinha tudo para cair nas graças também dos modernistas da primeira fase (muito além dos registros de Alcântara, Menotti, Bopp,Cassiano) lado a lado com os da segunda fase (os do nordeste) e da terceira fase , e mesmo dos ‘pós-modernistas’ — mas deu-se apenas na efêmera simpatia de ordem plástico-estética de Mario de Andrade e na contestação de cunho ideológico de Oswald de Andrade. Oswald de Andrade ainda combatia a popularidade do futebol no Brasil, sob o tema da “alienação”, o “futebol como ópio do povo”, já levantado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, elegendo para este confronto de idéias José Lins do Rego (reprisando o espírito da célebre  polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto).


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