terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

MODERNISMO, 90 ANOS – II

-- o Modernismo começou bem antes de 1922 e a verdadeira ‘revolução’ se  deu depois –



Modernismo,  “destruidor” e criador

Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam  tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então  período de grandes mudanças,  com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial ,acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de   idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse  e se  organizasse

É nesse contexto  que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas  o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias.

No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes,  passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.

A realização da Semana de 22 apenas reuniu e apresentou a um público bastante restrito - e escandalizado - alguns dos artistas que já vinham cultivando modernas formas de expressão, entre eles  Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Menotti del Picchia, além de Graça Aranha, na época autor consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, que usou seu prestígio para apresentar os jovens modernistas. Também participaram da Semana o músico Villa-Lobos, a pintora Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret, entre outros.

Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".

 A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico , os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais : a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país.

 Eram unânimes no combate às estéticas parnasiana, realista e romântica. .O parnasianismo é descartado enquanto gênero literário ultrapassado por aprisionar a linguagem nos cânones rígidos da métrica e da rima. A liberdade de expressão é a bandeira de luta do movimento, que reivindica a criação de uma nova linguagem, capaz de exprimir a modernidade.Também o realismo é criticado, na medida em que incidiria sobre valores tidos como retrógrados, tais como o cientificismo — a utopia é uma dimensão do real, porque não é apenas sonho, mas também um protesto. Assim, o ideal figurativo, a extremada ênfase no realismo são considerados barreiras à criação artística : associa-se  realismo a pessimismo, observando que os autores realistas dão sempre uma visão distorcida do nacional. Distorcida por sobrecarregar seus aspectos negativos, gerando sentimentos de derrota e incapacidade.

A objeção ao romantismo incide na ênfase que este dá ao sentimento, na sua tendência à tragédia e à morbidez. combate-se o romantismo argüindo a necessidade de atualização do ser nacional. No entanto, esta atualização assume um tom às vezes dramático e dilacerante quando sente-se
“(...) uma necessidade instintiva de apunhalar (...) esse quase duende (...) que, de
quando em quando, surge à tona do (seu) ser atualizado para relembrar o país
sempre intimamente sonhado da cisma e da sentimentalidade”
                     [Menotti del Picchia, "Uma carta", Correio Paulistano, 1 julho  1922]

Na crítica ao romantismo e a todo seu corolário de valores (devaneio, escapismo,culto à natureza, boemia) esboça-se a ética do homem empreendedor, ideologia típica dos países europeus no começo do processo de industrialização. Por isso,ao mesmo tempo,exige-se uma nova consciência social capaz de refletir a complexidade do mundo moderno

Duplo vértice histórico, a  Semana de Arte Moderna de 1922 faria o Brasil integrar-se definitivamente  no contexto filosófico-estético-cultural do século XX  e inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado, com “a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira ; a atualização intelectual com as vanguardas européias; o  direito permanente de pesquisa e criação estética.”. A partir de 1922 caminha o movimento modernista  em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional —e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a  identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro.Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e  iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.

Adotando como preceitos e princípios, “a desintegração da linguagem tradicional , adoção de linguagem coloquial e liberdade de expressão; a incorporação do cotidiano e busca da expressão nacional ; a assimilação das conquistas das vanguardas e inovações técnicas como o verso livre” , os modernistas "passaram por cima das distinções entre os gêneros, injetando poesia e insólito na narrativa em prosa, abandonando as formas poéticas regulares, misturando documento e fantasia, lógica e absurdo, recorrendo ao primitivismo do folclore e ao português deformado dos imigrantes, chegando a usar como exemplo extremo contra a linguagem oficial certas ordenações sintáticas tomadas a línguas indígenas". Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro o primitivismo,  elemento primordial da cultura brasileira que proporcionaria a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no País. Criaram uma nova versão sobre  nossa formação étnica diversa da clássica teoria da "trindade racial" composta pelo branco, o negro e o índio.

A visão  que escritores como Mário de Andrade, Oswald Andrade, Alcântara Machado, por exemplo, têm da presença italiana na Paulicéia é  importantíssimo de ser analisado  à medida que o movimento modernista propunha que se passasse a extrair temas da realidade concreta, do folclore e da cultura brasileiras, em seu sentido mais amplo. Os escritos literários, de prosa e  poesia modernista, além de crônicas, cartas, apontam elementos de fusão étnico-cultural em que realidade e ficção se fundem — o humano resgatado das ruas de uma São Paulo em transformação constante para povoar as páginas de uma produção literária igualmente em processo de transformação.
                
E não se pode deixar de considerar  uma das peças mais sutis já escritas sobre a cidade, na saudação emocionado, ‘de corpo presente’, do poeta franco-suiço Blaise Cendrars em meados da década de 1920, em contato estreito com os futuros modernistas — são lendários seus encontros, suas tertúlias intelectuais, as viagens a Minas Gerais, às cidades históricas, à Amazônia.Ele era naquele momento o poeta mais importante no contexto da arte moderna (membro do grupo de artistas associados ao circulo de Picasso, ele e Apollinaire haviam criado a poesia cubista; após a Grande Guerra ligou-se a Jean Cocteau, Fernand Léger, Darius Milhaud e aos Balés Russos de Diaghilev, empolgando a cena parisiense e o mundo da cultura). Segundo Nicolau Sevcenko, que ele tenha se apaixonado por São Paulo, para onde voltou várias vezes , “diz muito e talvez o essencial sobre o sentido histórico da cidade” — e de sua inserção, não apenas ambiental, no Modernismo brasileiro e historicamente,desde seu primórdio, na própria História e na cultura do País.

 "Eu adoro esta cidade.
 São Paulo é como o meu coração
 Aqui nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno                                                                
Só contam esse apetite furioso essa confiança absoluta
Esse otimismo essa audácia esse trabalho esse esforço
Essa especulação que faz construir dez casas por hora
De todos os estilos ridículos grotescos belos grandes pequenos

Norte e sul egípcio yankee cubista
Sem outra preocupação que a de seguir as estatísticas
Prever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia e
Atrair uma enorme imigração
Todos os países\Todos os povos
 Eu amo isso..."

mr  

Nenhum comentário: