terça-feira, 15 de novembro de 2011

A República, os intelectuais, o jornalismo e a literatura militante de Lima Barreto


este mês de novembro registra duas efemérides dignas de registro – no dia 15, a instalação da República, fato de fundamental importância política, institucional e social na história brasileira,em 1889 ; e no dia 1º.,em 1922, a morte de Lima Barreto, um dos maiores escritores que o País já teve em seu cenário cultural.Dois acontecimentos extremamente significativos, separados por 33 anos, mas irremediavelmente entrelaçados e integrados – até porque Lima Barreto, ao contrário dos intelectuais da época, foi o mais veemente e intransigente crítico do novo regime e da pretensa ‘modernização’ anunciada.Cento e vinte e dois anos de república e 89 anos sem Lima Barreto s, ambos os eventos propiciam estimulantes reflexões , não apenas sobre a política e a literatura brasileiras mas em especial sobre a própria institucionalidade do País.

Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais solidamente arraigada nas teorias cientificistas de 1870 e no espírito progressista da época parecia estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”: as idéias circulavam então mais livremente, num ambiente que Evaristo de Moraes [1] qualificou de “porre ideológico”, um verdadeiro mosaico no qual era predominante o liberalismo - manifestando-se especialmente entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava alguma voga de anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias explícitas ao socialismo em Martins Fontes, Olavo Bilac, e até anti-racismo declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim.

Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia: contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação — no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907) — e remodelar e fortalecer o Estado (o que obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no liberalismo....).

Já no dia 15 de novembro de 1889 os intelectuais registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet -- estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos : “Os abaixo-assinados ,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República. Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes militares do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel dr. Benjamin Constant.O povo do Rio de Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou como nova forma de governo nacional a República.Esperam os abaixo assinados , representantes do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual,instituindo a República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada nacionais ! Viva o povo do Brasil !”

O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro : “O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela grande parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores mais enérgicos e mais desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República,as duas grandes forças lá estão ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro ! ao futuro,modeladores de povos,construtores de nações ! [2]

No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais ,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação na política— o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.

As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime , que se deu por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se: “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, no artigo“Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve: “Todos se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que este País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”, lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.

No campo político, os intelectuais mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos.Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas, na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados ,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si -- eficiente Rui Barbosa nesse trabalho de ‘cooptação’ -- o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime , constituindo o que à época se auto-denominaram “República dos Conselheiros”.

Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua , episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao Encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional”[3] e decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.

Mas paradoxalmente foi o processo de arrivismo bursátil e de especulação mercantil -- gerando incremento de vultosos recursos , provocando a modernização da cidade, urdindo o que se denominou Regeneração, construindo a imagem de “uma sociedade ilustre e elevada” -- que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio : passaram a ser vistos pela sociedade como ‘símbolos de ilustração’, ‘expoentes da cultura’, propiciando, entre outros aspectos, o desenvolvimento do ‘novo jornalismo’, ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma . A adesão maciça dos escritores ao jornalismo, exercendo inevitavelmente efeitos negativos sobre a criação artística—falou-se em “vazio de idéias”—obrigou-os a uma redefinição de suas posições intelectuais e uma clivagem em seu universo social. Deflagrava-se com todas as letras e tintas a belle époque cultural, com o conseqüente processo de banalização e neutralização da força cultural da literatura, o intelectual descaracterizado e ‘dissolvido’ em meio à sociedade, às facilidades da nova vida social tendentes a extinguir o engajamento dos intelectuais que haviam feito a República. O novo espírito “agitado e trêfego” que tomou conta da cidade produziu “o recolhimento dos autores em estéticas e poéticas evasivas”, no entender de José Veríssimo, os intelectuais irreversivelmente assimilados pela nova sociedade construída pela República abrindo espaços para a mercantilização e banalização da própria literatura – vista agora como “o sorriso da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto : “(...)A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação.[4]

Entrou-se de cheio no espírito mundano da belle époque, atingindo seu auge na primeira década do século, cuja literatura típica, porém, era estéril em termos nacionais, ainda que seu modelo cosmopolita europeu se coadunasse com a própria fachada da época: era uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas europeizadas, fomentador do consumo, do excesso,da sensualidade,do aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico , uma coligação de alta sociedade e alta cultura.(nesse aspecto,Lima Barreto tinha a chave para entender e interpretar o Rio de 1900 : o bovarismo , que apontava para as fantasias centrais que compunham o significado dessa época).

O certo é que a decepção com a República e o ‘espírito’ inerente ao novo século, “o século da modernização e do progresso”, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’, acarretando, por uma razão ou outra, a necessidade de adesão quase maciça dos literatos ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno cultural mais marcante dos primeiros tempos do século XX. O significativo desenvolvimento dos meios técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiu o crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas revistas ilustradas, ambos incluindo matérias literárias. Por essa época, tanto os jornais como as revistas buscaram mais intensa e concretamente atingir a classe média urbana que então ia se formando e consolidando com o advento da República. Jornais e revistas, além do compromisso de informar e divertir, estavam engajadas num movimento de ‘democratização’ cultural: periódicos como Gazeta de Notícias, Diário do Rio de Janeiro,O Paiz, Diário Mercantil ,Correio da Manhã, Jornal do Commercio,Jornal do Brasil, Rio-Jornal, A.B.C. e as revistas O Malho , Revista da Semana, Kosmos, A Renascença , FonFon! ,Revista Contemporânea (essas duas caracterizadas como “simbolistas”), Careta , Ilustração Brasileira, A Cigarra, Revista do Brasil, Dom Quixote, Paratodos, O Cruzeiro, incluíam muita matéria cultural, como reportagens sobre exposições de artes plásticas, crítica literária, música, contos, crônicas, poesia, teatro e cinema . Quase todas as revistas não conseguiram sobreviver por muito tempo e ter vida longa — exceção apenas a FonFon! e a Careta, que chegaram, não ininterruptamente, até à década de 1950.A maioria dos jornais e revistas (tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo) acolhia , e pagava , colaboração literária o que propiciou a escritores e literatos terem publicados seus trabalhos e ter uma fonte de recursos — para muitos, a única — e um chamado “second métier” condigno . Vale registrar que a imprensa propiciou a mudança para a metrópole de muitos intelectuais que não logravam realizar-se literariamente em suas cidades e regiões de origem.[5]

A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer mormente da literatura, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República”.No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, estava Lima Barreto – por essa época já respeitado como articulista e cronista e reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentava ele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época (...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza” [6]

Lima Barreto impôs — com sua escrita simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo depois rompante na cultura brasileira [curioso notar que Lima Barreto morreu no mesmo ano de 1922, nove meses depois do fevereiro em que eclodiu o movimento,em São Paulo], cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p.ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres[7] : nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a ‘descoelhonetizar’ [ref. a Coelho Neto,então epígono da escrita rebuscada e cheia de floreios retóricos] a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números.

Assim, na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então, aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista. Segundo o historiador e ensaísta Nicolau Sevcenko [8] , “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais” .

Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do “sorriso da sociedade” apregoado por Afrânio Peixoto, Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade”. Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam; digamos não a uma literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e políticos” (...) “a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”

Dono de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”[9], em Rio Preto, São Paulo, em fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora . A importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida[10]

Esse ideal, entendia ser impossível cumprir sob a égide acadêmica , como expõe taxativamente naquela entrevista à A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço glorías, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita coisa...”

Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra: sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. A “esperança” mencionada por ele na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.

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[1] E. de Moraes , Da Monarquia para a República ; s.ed., Rio de Janeiro, 1936 ;p.36

[2] cf. Silvio Romero,Novos estudos de literatura contemporâneas ; s.ed., Rio de Janeiro, 1898;p.46 .

[3] Visconde de Taunay, O Encilhamento ; editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1971; p.18

[4] A. Peixoto,Panorama da literatura brasileira ; Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940 ; p.79.

[5] Em O momento literário, de 1905, João do Rio indagava aos escritores brasileiros, entre outras questões, se “o jornalismo é um fator bom ou mal para a arte literária ?”(p. 61) — e nem todos os entrevistados interpretaram e responderam da mesma maneira : inteiramente contrários se mostraram por exemplo Luiz Edmundo, Elisio de Carvalho, Pedro do Couto, Inglês de Souza,, mas a maioria ,caso de Olavo Bilac, Silvio Romero, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque, José de Alencar via no jornalismo uma “face bastante favorável ”, que podia ser praticado sem nenhum prejuízo para a arte literária ­— e exemplos expressivos estão em Machado de Assis, Alencar ,Bilac, José Veríssimo, , João do Rio, Lima Barreto.

[6] In Impressões de leitura ; ed. Mérito ,Rio de Janeiro, 1953; p. 32.

[7] artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11.11.1948; p. D- 5

[8] N. Sevcenko,Literatura como missão:tensões sociais e criação cultural na Primeira República;ed. Brasiliense, São Paulo, 1983; p. 217.

[9] publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos.

[10] in Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro,1923.

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