sábado, 19 de novembro de 2011

Machado de Assis e a “consciência negra”


para dirimir todos os equívocos acerca de uma suposta,absurda ‘alienação’ à questão da negritude

Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação --que ,como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum ‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.

Além de tudo, não se queira exigir de Machado uma postura – a mesma,p.ex., de abolicionistas (muitos deles seus amigos) , de outra verve e atitude – de militância ativa, discursiva, panfletária : nada disso fazia parte de sua natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou na vida e na própria escrita literária.

Machado fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e de “denegação das origens” em sua obra.

A tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores ; é solapada ao se ler,por exemplo, as crônicas de 18.07.1864, de 04.04.1865,01.10.1876,15.06.1877,14.07.1878,07.11.1883,23.111885,30.08.1887,27.09.1887,11.05.1888,19.05.1888,20-21.05.1888,27.05.1888,01.06.1888,26.06.1888,14.05.1893,04.11.1897 ; perde vigor ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na antológica novela Casa Velha(1885) e nos romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências, encontra-se no cerne da concepção desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – cujo centenário de publicação deve constituir em imperdível oportunidade de ,primeiro, conhecer uma obra-prima, das maiores que a literatura brasileira já produziu , além de acompanhar a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país

A crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se diretamente ao público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente expressou sua implacável crítica ao escravagismo – mormente na série “Bons Dias!”, publicada na Gazeta de Notícias ininterruptamente de 05 abril de 1888 a 29 agosto de 1889 (per se como se sabe um período crucial da história brasileira, entre a concretização da Abolição e a emergência da República), de todos os conjuntos croniquescos de Machado aquele de mais contundente teor crítico,fosse à escravidão fosse ao novo regime , aquele que registra opiniões nunca expressadas por ele com tanta clareza e coerência, tanto que valeu-se ‘sensatamente’ do anonimato (somente descoberta autoria de Machado, por Galante de Souza, na década de 1950!),dada não só a explosiva complexidade do momento mas também ao risco,diante do delicado tema da república , que um funcionário público graduado da monarquia pudesse correr.

Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta naqueles parlamentares que intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular, aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].

Na verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política, e até mesmo sobre economia.Tinha,sim senhor, opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República -- e é possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, a qual no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor de sua produção não-ficcional centrava-se na questão da identidade nacional — preocupação expressa claramente nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em 1858), “Instinto de nacionalidade”(de 1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.

Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando as tensas relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.

Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático ,narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888,vale dizer já implementada a Abolição, as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a tal, Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica -- não se furtou.

O primeiro dos contos desse naipe, “Frei Simão” - publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - se nas linhas narra uma história de amor,traçada em termos melodramáticos – um jovem de família rica que se apaixona pela criada,negra – traz as tinturas subjacentes do comentário machadiano ás relações entre indivíduos ,mais que de classes sociais, de etnias diferentes, e mais: a aparente simplicidade da narrativa embute um teor de modernidade (isso em 1864 !) expressa no expediente da fragmentação das memórias inéditas de Simão, a revelar uma história verdadeira, até então oculta nas linhas – como que significando a impossibilidade do autor ma em utilizar a linguagem adequada para exprimir o autoritarismo patriarcal do pai de Simão e a crueza\crueldade da condição do escravo(Helena).“Virginius” – também publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - encarna com sutileza a dificuldade – quase impossibilidade – de expressão literária de tema tão delicado, mas exibe com todas as tintas a brutalidade e desumanidade do regime escravista, personificadas na violência e covardia de Carlos, ironicamente filho do pai de todos, um dono de escravos bondoso. Machado expõe com todas as letras e tintas a representação da crueldade inerente a relações inter-raciais de seu tempo—inclusive deixando implícito o entendimento do estupro como formas de escravidão."Mariana” abriga , de modo mais incisivo, o assunto escravidão – e de forma tão mais realista que veio a ser publicado em duas versões – a primeira, em 1871- no Jornal das Famílias - na qual Machado utiliza muito mais contundência no tratamento do tema “perigoso” que nas obras anteriores ( afinal, o ano é o da publicação da Lei do Ventre Livre, a permitir talvez que algo mais pudesse ser dito...), mas aliado,esse tom mais contundente, à contumaz estratégia da dissimulação,aqui temperada de sarcasmo: o homem branco tem a palavra para ele mesmo expor sua insensibilidade e descaso com relação aos negros, o autor (Machado) denunciando explicitamente a má consciência dos senhores no momento de uma crise “histórica” que mobilizava toda a nação – inclusive a protagonista,assim como a personagem Elisa, personificando a submissão tanto feminina quanto étnica ; a segunda versão, em 1891 – na Gazeta de Notícias - com o texto totalmente reelaborado , expressando a maior liberdade então concedida a se escrever sobre o assunto (além do fato de ser publicado no jornal que ,por todos os motivos e aspectos, permitia maior ‘autonomia’ a Machado).“O caso da vara”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias , 1891, não fosse por seus próprios atributos temáticos e narrativos , constitui uma das obras mais notáveis , porque emerge com toda sua contundência em um período digamos pouco fecundo de produção contística de Machado. O conto pode ser lido não só como uma história irônica, cuidadosamente estruturada, de conflitos internos versus ações reais – que são vencidas pela torrente dos seus pensamentos, medos, crueldades e dramas, conduzindo a narrativa até um desfecho enigmático-- mas sobretudo como uma perturbadora peça dramática com todas as características da tragédia clássica. Tal como esta, evidencia-se a predileção de Machado de Assis por situações universais que revelam a feição trágico-cômica do comportamento humano, numa narrativa carregada de implicações morais.“Pai contra mãe”, não publicado em periódico mas sim na coletânea Relíquias de casa velha,1906, abre-se com palavras extremamente frias e objetivas, raríssimas vezes empregadas por Machado em sua ficção. É um dos contos mais perturbadores, um grito contra a escravatura, ainda que – e nisso reside sua profunda dramaticidade – seja um grito abafado, amordaçado, mas carregado de emoção : um tipo de emoção estritamente pessoal,diga-se, porquanto parece Machado intentar nele exprimir sua própria condição original de mestiço , uma dramática ambiguidade que se o perseguiu,segundo algumas interpretações, durante toda a vida , quase nunca transpareceu na obra literária.É um texto arrepiante na sua violência controlada, na sua perfeita construção da estrutura literária ; quer ensinar-nos o que é o horror da escravatura, mas para chegar a isso utiliza o que há de mais chocante para o leitor: a apresentação do horror como ‘normalidade’.Machado avisa desde o primeiro parágrafo, quando interrompe a fria descrição dos instrumentos de tortura, para se dirigir diretamente ao leitor e lembrar que “era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel.”


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