terça-feira, 8 de novembro de 2011

"Clara dos Anjos", obra fundamental em Lima Barreto


"Clara dos Anjos", de Lima Barreto, agora em quadrinhos (roteiro de Wander Antunes e ilustrações de Marcelo Lelis).Uma das mais importantes obras de Lima, de relevância ímpar – não (apenas) por ser sua primeira obra ficcional, mas por simplesmente representar, emblematizar e sintetizar a própria evolução literária barretiana (também o há em Lima—‘a la’ Machado,- nada sendo estanque ou isolado em sua produção ficcional, uma obra se sucedendo e integrando a outra,temática e tramaticamente :no caso específico, “Clara dos Anjos” no epicentro,em torno dela gravitando os romances seguintes) e constituir per se um marco a determinar o rumo imprimido à sua ficção .

“Clara dos Anjos” aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este mantido essencialmente o mesmo (a mulata, de família humilde, no subúrbio do Rio de Janeiro,seduzida pelo homem branco e depois abandonada) mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo. A primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo (depois da sedução, Clara,desonrada, é explorada por vários homens); a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos (depois de seduzida, Clara assume sua desonra e leva a vida melancólica e pobre); a terceira, um romance ‘acabado’ (a narrativa centraliza-se nos mínimos detalhes da sedução), escrito entre dezembro 1921 (há exatos 90 anos, portanto) e janeiro 1922, veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947 – sua derradeira obra fechando assim o ciclo ficcional do escritor.

As diferenças marcantes e importantes de uma versão para outra residem nos desvios de enfoques adotados por Lima – o que aponta mudanças em seu pensamento e sua ‘estética literária’ no decorrer dos anos: do foco sobre a situação dos negros na cidade do Rio,em 1904, ao foco menos projetado sobre a questão racial e mais enfático à miséria e injustiça social como um todo,independente de raça, sob cunho ‘romanesco’, o autor ressaltando os aspectos e o teor trágico que aflige indistintamente homens e mulheres desgraçados pela miséria, em 1921-22 – valendo observar,nesse sentido, uma diferença no tratamento dado por Lima ao trágico, sempre recusado por ele ,e assumido na obra derradeira. Da conotação eminentemente social-racial do primeiro texto a múltiplas conotações social,econômico e psicológico no último -- ainda que discriminação e preconceito raciais sejam elementos constantes em toda sua ficção.

“Clara dos Anjos” em suas três versões expressa crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco,mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos). Guinada que já se manifesta, de resto, em Recordações do escrivão Isaias Caminha, também elaborado em 1904,e finalizado em 1905 : o romance inacabado de 1904 como que prepara o romance de 1905 – neste, da idéia inicial de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, de obra denunciadora de discriminação social-racial a obra crítica-satírica ao mundo jornalístico e literário (trata-se na verdade de exemplo típico da “falácia intencional”,conforme o conceito cunhado pelo crítico francês Pierre Macherey em sua obra Pour une théorie de la production littéraire : intenções e decisões preliminares e apriorísticas do autor ao conceber uma obra podem não prevalecerem e serem alteradas na confecção mesma da narrativa – como que o autor ‘descobrisse’ sua história ; na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões, como de Isaias Caminha, Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.)O desvio da concepção original de “Clara dos Anjos para a narrativa que iria preponderar em Isaias Caminha forma o caminho que seguiria a partir daí até o fim da (curta) vida literária.

“Clara dos Anjos”,mais do que a evolução literária sintetiza a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e aqui, essencialmente no desvio do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a insofismável conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio O que é a Arte ?, e “percepção religiosa da arte”), de resto a maior,e crucial, influência absorvida por Lima do começo ao fim de sua obra,em especial no que tange à transformação de ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão” : mas isso faz parte de outra história...ou artigo).


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