sábado, 21 de fevereiro de 2009

A literatura vai ao cinema (e vice-versa)


independentemente de festas,festivais e premiações com o Oscar hollywoodiano, o cinema sempre é objeto do foco, das luzes , sempre presente no imaginário e no real cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura--- uma dicotomia que sempre existiu : o relacionamento, muitas vezes complexo, mas intenso,entre a escrita e a ‘sétima arte’

Eventos como a ‘festa’ do Oscar , e de resto como os festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques, são excelentes por permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, porém,entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão — meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que , principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, William Faulkner, James Age e Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."

Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso,mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Quase sempre nesses exercícios literários
· a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme -- e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam mudanças de foco narrativo [ de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
· a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que no cinema a ação é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador -- mas não o é para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando com a imaginação do leitor
· na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura -- mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
· assim também com as situações, fatos e com a própria ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
· como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.
Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.
“O romance , na verdade, sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”,
ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de Da matriz ao beco e depois , e o cruzamento da literatura com outras formas artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980 , com a produção de obras que “ incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação : as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores : caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas “, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “ não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick -- para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...

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