quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ainda por um São Paulo x Rio - II

Esses entusiastas do futebol teriam, porém, de enfrentar, do outro lado, a veemente e intransigente oposição de ninguém menos que Lima Barreto, que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários -- três romances e uma infinidade de crônicas publicados -- Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas:
(...) Diabo! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...
Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball.“
(...)
Lima Barreto atentava, desde o princípio, para a força social do jogo : longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar “paixões e ódios” — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Iniciou-se então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa , logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato”, na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919, em que :acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí, Lima aumentaria nos meses seguintes a quantidade e intensidade dos ataques, passando no entanto a valer-se de fina ironia , como nos artigos “Uma partida de foot-ball”,
Das coisas elegantes que as elegâncias cariocas podem fornecer ao observador imparcial, na há nenhuma tão interessante como uma partida de futebol. É um espetáculo da maior delicadeza em que a alta e a baixa sociedade cariocas revelam a sua cultura e educação (...)
(...) O que há, porém, de mais interessante nessas festanças esportivas, é o final. Sendo um divertimento ou passatempo, elas acabam sempre em rolo e barulho.Por tal preço, não vale a pena a gente divertir-se.É o que me parece
.”
e “Vantagens do foot-ball”
Não tenho dúvida alguma em trazer para as colunas desta revista a convicção em que estou, de que o jogo de futebol é um divertimento sadio, inócuo e por demais vantajoso para a boa saúde dos jogadores respectivos. (...)
Não querendo eu passar como retrógrado e atrasado e no intuito de também defendê-lo, tenha tido a paciência de colecionar nos cotidianos as notícias mais edificantes sobre as excelentes vantagens do divertimento de dar pontapés em uma bola. Publicarei por partes esse arquivo precioso; hoje, entretanto, dou algumas amostras do que tenho colhido nos jornais, para encanto e satisfação das gentilíssimas “torcedoras” .No Jornal do Commercio, de 12 de dezembro do ano passado, encontrei esta pequena novidade, sob o título “Futebol desastrado”. Ei-la:
O menino Antonio, de 12 anos de idade, filho Manoel Ferreira, morador à Rua Schy, nº 35, quando jogava futebol no terreno de uma escola pública do largo de Madureira, fraturou a perna direita. Antonio foi medicado em uma farmácia.
etc., etc.
Meses antes, esse mesmo jornal, isto é, a 7 de julho, dava outra notícia que me vejo obrigado a transcrever aqui. Leiamo-la sobre a epígrafe “A paixão do futebol”:
O menino Waldemar Capelli, de 15 anos, filho de Taseo Capelli, morador em Vila Aliança, nas Laranjeiras, passou a tarde de ontem a jogar futebol, num campo perto de casa. Interrompeu o divertimento às seis horas, para jantar às pressas e voltar ao mesmo exercício. Quando o reencetou , foi acometido de um ataque e a Assistência Pública foi chamada para socorrê-lo.Esta chegou tarde, entretanto, porque Waldemar estava morto.
etc., etc.
Não ficam aí as demonstrações inequívocas das vantagens de tão delicado jogo. Todas as segundas-feiras, quem tiver paciência, pode procurar muitas outras no noticiário dos jornais.(...)
escritos para Careta, respectivamente de 19 de junho e 4 de outubro de 1919.
A cruzada do irascível combatente
Dos artigos, agressivos ou irônicos, de Lima Barreto surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil” ; propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores,rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto”, e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e os malefícios “físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Em 1921, então editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a mocidade brasileira publicado (Empresa Brasil Editorial, Rio de Janeiro),com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”, hoje obra raríssima .Lima Barreto viria a publicamente agradecer e fazer comentários ao livro de Sussekind no artigo “Como resposta”,em Careta, a 8 de abril de 1922.
As aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na revista Careta em 04 de dezembro de 1920, em que mais uma vez destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “o fim próprio e natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, em Careta de 1 de janeiro de 1921.
Por trás da crítica estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacionais, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona.“
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros, e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as”: segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”. Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo” (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais,vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proibiu jogadores “de cor” de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas , publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte”, e apontando o caráter nocivo do futebol para o país :“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam.”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, como “um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, no l A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje , uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — não foi devidamente compreendida por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada” serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’” – no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para Careta de 18 de novembro de 1922 ).
A realidade incontestável é que o futebol continuou – e continua -- ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como ‘força esportiva’, ‘força social’, ‘força cultural’. Seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais — de Graciliano Ramos, que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho", em 1919), a Orígenes Lessa ,Fernando Sabino, que o inseriram em contos ; de Gilberto Freyre ,um entusiasta de primeira linha, que incluiu o futebol em muitos de seus escritos, a Mario Filho – autor do memorável O negro no futebol brasileiro – e chegando ao auge da paixão futebolística ‘a serviço’ da literatura, nela integralmente enfronhada e estigmatizada, em José Lins do Rego e Nelson Rodrigues.

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