segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

São Paulo,455 anos - IV

A cidade modernizada
Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida, e no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil também vivia período de grandes mudanças, inclusive com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial ,acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo, em 1917, 1918, 1919 e 1920 , a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. E nos anos seguintes viriam radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas, a histórica Revolução Constitucionalista de 1932 em que “São Paulo levantou-se em armas contra o Governo Provisório e em defesa da Constituição”.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo — que influenciaram diretamente o Modernismo no Brasil. De acordo com Afrânio Coutinho, "todos esses ‘ismos’ que povoaram a cena literária ocidental de 1910 a 1930 foram “reações contra o esgotamento e o cansaço ante o peso da tradição literária ocidental. Eram janelas que se abriam para o futuro, preocupação que absorvia os espíritos. Eram atitudes violentas de destruição e negação do passado, que consideravam morto e inútil, tentativas de regresso à inocência primitiva ou infantil. Eram glorificações da técnica e do mundo mecânico, fonte única de dinamismo. Eram a libertação de todos os freios e formas tradicionais”.No Brasil da década de 1910, onde o Parnasianismo e o Simbolismo ainda norteavam as criações poéticas, mas já mostravam sinais de esgotamento, as vanguardas européias foram recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística.
O Modernismo representa efetivamente um esforço de reajustamento da cultura às condições sociais e ideológicas, em processo de mudança desde o fim da Monarquia. Sua ideologia estético-cultural tinha como essência o resgate de valores genuínos do passado e sua simbiose com um futuro embalado pelas tecnologias do progresso. Rompia com tendências, refutando a corrente literária estabelecida, que continuava a fluir, e retomando temas renegados pelas equivocadas aspirações de modernidade no período imediatamente seqüente à instalação da República. E São Paulo —anteriormente cenário de uma reforma urbana ainda mais radical do que a executada no Rio de Janeiro —como o berço da renovação modernista mais do que outra capital aproximava a metrópole brasileira às suas congêneres européias, que serviam de modelo aos intelectuais,empenhados em transformar as capitais em centros cosmopolitas, moldados na produção cultural do Velho Mundo.
São Paulo esteve presente na principal mudança política do País no século XIX: implantada a República, o primeiro presidente civil, sucedendo em 1894 ao marechal Deodoro da Fonseca, foi o paulista Prudente de Morais,formado pela histórica Faculdade de Direito. Aliás, bastante intensa e marcante foi a militância republicana paulista, lastreada como em nenhum outro grupo , nos liberalismo clássico : Prudente de Moraes “e todo seu círculo político-administrativo eram imbuídos do intento de forjar um Estado-nação moderno no Brasil, eficiente diante dos novos cenários mundiais”.
Por todos os motivos e fatores, São Paulo passa a ser o símbolo da modernidade e brasilidade:"Em nenhum ponto da nossa pátria ainda encontramos reunidas tantas possibilidades, tantos fatores para a elaboração de uma grande nacionalidade. É em São Paulo que está se formando a grande intuição, o grande conceito de pátria", assevera Menotti Del Picchia. No cosmopolitismo da cidade os intelectuais paulistas entrevêem o novo Brasil que se anuncia. Centro industrial, berço do movimento modernista, São Paulo corporifica o espírito do progresso e da modernidade.E por essa época já era bastante sedimentada uma certa visão ideológica de que para ‘ser autenticamente brasileiro é preciso ser paulista’ . No comentário ao livro de Guilherme de Almeida ,Raça,elogiando a obra pelo alto sentido nacionalista, Sérgio Milliet declara que "Guilherme é profundamente brasileiro. Digo mais paulista." [Mário de Andrade, em carta dirigida a Sérgio, o advertiria contra o sentido simbólico, heróico e grandiloqüente atribuído à palavra paulista.]
A aristocracia enriquecida com o café e com a industrialização patrocinava obras e eventos artísticos — como iria fazer em 1922 com a Semana de Arte Moderna, considerada o marco inicial do movimento; na cidade surge a moderna indústria editorial brasileira, com o aprimoramento técnico de tipografias e o empreendimento de Monteiro Lobato que, entre 1918 e 1925, à frente de sua editora, revolucionou a produção e a difusão de livros no país — o início de uma nova fase no sistema literário brasileiro.E antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada : Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia; Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
Os pré-modernos
Antes do Modernismo
Pioneira como sempre , a cidade onde nascera em 1887 o regionalismo literário,com Ezequiel Freire, teve o fomento decisivo em Valdomiro Silveira , cujos contos publicados em jornal,ainda em 1891, são anteriores a Pelo sertão, do mineiro Afonso Arinos, de 1898 (considerado equivocadamente o marco inicial ); e mais adiante, com Paulo Setubal inaugurando o romance histórico brasileiro em A Marquesa dos Santos. A Paulicéia, ainda não batizada de “desvairada”, teve no pré-modernismo as figuras importantes de Martins Fontes ,Rubens Borba de Moraes ,Leo Vaz , Hilário Tácito, e de Monteiro Lobato — pioneiro, inovador e renovador, revolucionário e precursor , na melhor tradição da cidade.
E um artista do mais elevado quilate, consagrado universalmente nas artes plásticas, que praticou, os primeiros deles ainda na terra natal de Brodósqui, seus “escritos” — assim as denominava : Candido Portinari (1903- 1962 ) criou poemas como
O menino e o povoado [O circo]
(...)
Sentia-me feliz quando chegava um circo.
Vinha de terras estranhas.
Todo o meu pensamento se ocupava dele.
O palhaço, montando um burro velho, fazia
Reclame com a meninada acompanhando.
Eu assistia ao espetáculo e apaixonava-me pelas
Acrobatas de dez a quinze anos. Fazia
Planos para fugir com elas. Nunca lhes falei.
Por elas tudo em mim palpitava.
Minha fantasia.
Voltando à vida real, entristecia-me. Não era eu
Um príncipe? Nada disso. Roupas baratas,
Pobreza... Até as flores lá de casa pareciam
Murchas e sem perfume. Só nos achávamos
Bem rondando o circo. Quando partia para outra
Localidade, eu sentia tanta tristeza, chegava ao desespero,
Chorava silenciosamente; desolado ia ver o trem
Passar na direção onde estavam as acrobatas.
Talvez pensassem em mim
O trem seria meu emissário.
Nos encontraríamos mais
Tarde... O tempo deixava pequena lembrança
Até a chegada de outro circo...
(...)

O menino e o povoado [Não tínhamos nenhum brinquedo]
(...)
Não tínhamos nenhum brinquedo
Comprado. Fabricamos
Nossos papagaios, piões,
Diabolô.
A noite de mãos livres e
pés ligeiros era: pique, barra-
manteiga, cruzado.
Certas noites de céu estrelado
E lua, ficávamos deitados na
Grama da igreja de olhos presos
Por fios luminosos vindos do céu
era jogo de
Encantamento. No silêncio podíamos
Perceber o menor ruído
Hora do deslocamento dos
Pequenos lumes... Onde andam
Aqueles meninos, e aquele
Céu luminoso e de festa?
Os medos desapareciam
Sem nada dizer nos recolhíamos
Tranquilos...
(...)
________________________
fragmentos de Poemas de Cândido Portinari: o menino e o povoado, aparições, a revolta, uma prece, org. de Manuel Bandeira ; ed. José Olympio, Rio de Janeiro,1964.

Monteiro Lobato
Entre o nascimento em Taubaté, em 1882, e a morte em São Paulo, em 1948, Monteiro Lobato teve uma das mais intensas, diversificadas , criativas — e exemplares, para a História — vidas de um brasileiro de qualquer época. Um ser plural: articulista, jornalista, tradutor, editor e escritor de obras memoráveis, pioneiro e inovador, precursor da literatura infantil brasileira, revolucionário na indústria editorial, foi um intelectual empenhado na reflexão e discussão das questões — políticas, ideológicas, sociais, culturais, educacionais — de seu tempo.
Polemista por excelência, desde o inaugural artigo "Velha Praga", publicado em O Estado de S. Paulo em 1917 — um protesto contundente contra as constantes queimadas no campo, criando um dos personagens-símbolo da literatura brasileira, o Jeca Tatu (que deu origem a seu primeiro livro, um marco da contística nacional : Urupês , de 1918) — Lobato,sempre preocupado com o desenvolvimento social e mental do povo, foi ávido divulgador da ciência e do progresso . De militância nacionalista , em seus livros e fora deles, nunca deixou de pronunciar-se sobre os temas relevantes de seu tempo: educação, cidadania, ética , questão agrária, violência. Também no campo educacional Lobato, como em outros terrenos, foi um pioneiro. O histórico livro A menina do narizinho arrebitado, que deu origem a toda ficção infanto-juvenil dele e da própria literatura brasileira, foi publicada em São Paulo em 1920, exatamente no ano em que se debatia no País as reformas educacionais : explorando o imaginário infantil, atiçou valores de cidadania, solidariedade,lealdade, afeto e patriotismo, induzindo e instigando a reflexão e o espírito crítico dos jovens leitores— a literatura infantil como elemento fundamental de identidade cultural. A par de tosas suas outras atividades, Lobato dedicou aos jovens o melhor de sua criação, em 22 livros absolutamente irresistíveis e incomparáveis, formadores de gerações e gerações de leitores.
Seu acervo literário impressiona pela qualidade e pela diversidade: Urupês , Cidades mortas , Negrinha (contos) ; O presidente negro ou O choque das raças (romance); Idéias de Jeca Tatu, A onda verde , Mundo da Lua , O macaco que se fez homem , Mr. Slang e o Brasil , Ferro , América , Na antevéspera , O escândalo do petróleo , A barca de Gleyre , Problema vital, Miscelânea (ensaios e polêmica); A menina do narizinho arrebitado , Nas reinações de Narizinho , Viagem ao céu e O Saci , Caçadas de Pedrinho e Hans Staden, História do Mundo para crianças , Memórias da Emília e Peter Pan , Emília no país da Gramática e Aritmética da Emília , Geografia de Dona Benta, Serões de Dona Benta e Histórias das invenções , D. Quixote para as crianças , O poço do Visconde , Histórias de Tia Nastácia , O Pica-pau Amarelo e Reforma da Natureza, O Minotauro , Fábulas e Os Doze trabalhos de Hércules (Literatura Infantil).

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