sábado, 17 de janeiro de 2009

São Paulo,455 anos - III


A cidade mutante
Em São Paulo, talvez mais do que em qualquer. outra cidade brasileira na época, manifestou-se a tese de Antonio Candido segundo quem “não se pode, nem deve delimitar obras e autores pelo critério estrito do nascimento”, mas sim de acordo com “o critério mais certo e plausível da participação na vida social e cultural de uma localidade ou região e de participação e integração de valores comuns, construindo obras em torno deles, agindo em função de estímulos recíprocos, estabelecendo intercâmbios, para chegar a uma ‘comunicação’”. A cidade , por suas características próprias, marcou e foi sensivelmente marcada pelos que nela viveram e vivem, em grau e modo mais forte que as de seus lugares de origem. Por uma razão ou outra, a cidade logo atraiu — ainda como estudantes— muitos daqueles que mais tarde se tornariam intelectuais e autores proeminentes no cenário literário-cultural brasileiro.
Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico poema “Navio negreiro”__ quem incutiu um teor social ao tipo de obra, sobretudo poética, que se fazia então.
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria. Simultaneamente, outras agremiações vão surgindo, em alta efervescência literária e cultural : Ensaio Filosófico (1850), Ateneu Paulistano (1852), Associação Culto à Ciência (1857), Instituto Acadêmico (1858), Clube Literário (1859).Algumas delas tiveram seu periódico, como a Revista mensal do Ensaio Filosófico Paulistano , o Ensaios literários do Ateneu Paulistano, jornais como Acaiaba, O Guaianá, A Academia, Íris.
Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . O ‘satanismo’ então constituiu a manifestação mais típica desse tipo de poeta-crítico-estudante singular e proeminente no meio literário-cultural da São Paulo de meados do século XIX —— o satanismo como expressão de uma ideologia de “revolta espiritual, de negação de valores triviais, de intenso egocentrismo” , ingrediente de uma certa atmosfera de desvario que passa a permear a vida acadêmica da cidade . Por meio da obra ainda incipiente de Álvares de Azevedo , com sua típica tonalidade de melancolia, humor negro, sarcasmo, gosto da morte, é difundido por todo o País e atrai Fagundes Varela, Raimundo Corrêa, Couto Magalhães.
Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Rodrigues Alves .
As duas primeira décadas do século XX assistem o despontar de outra forma de pionerismo: o denominado “regionalismo consciente”— a explorar o rico filão do folclore paulista — tendo seu precursor em Valdomiro Silveira(na esteira aberta por Ezequiel Freire), que publicava seus contos desde 1891, e em seguida Monteiro Lobato, ficcionista que nunca se furtou a tratar (e denunciar) de questões como as condições de miséria em que vivia o caipira, os problemas do petróleo, a siderurgia, a edição e comércio de livros. Com o Modernismo —do qual Lobato, Leo Vaz, Hilário Tácito, Rodrigues de Abreu, Afonso Schmidt, Paulo Setúbal, Orígenes Lessa se colocaram à margem — o eixo literário nacional iria deslocar-se concretamente para São Paulo.
O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam no século XX com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias citadinas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual__ até porque já era uma tradição, no mundo, a valorização de virtudes intelectuais , o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e uma atividade cobiçada por muitos filhos da classe média.
A valorização da inteligência__ a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura”
[1] --fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real — com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’.
No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante.Acentuam-se então os teores de sentimentalismo, romantismo e nacionalismo — em oposição ao ‘satanismo’ característico da décadas de 1840/50, caracterizado em Álvares de Azevedo — privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como degrau de ascensão social incorporou-se à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo (há de se considerar também Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio) — que adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
A incorporação efetiva da literatura à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes foi primordial para a consecução do Modernismo de 1922 , que iria promover profunda renovação literária e cultural e exercer forte e incontrolável influência no meio cultural, social e político de todo o País . Até porque expressaram um esforço para retirar à literatura o caráter de classe— dado pela elite social e cultural pós –1890 — transformando-a em bem comum a todos.Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.
E a eclosão do decisivo Modernismo, na segunda década do século XX, veio concretamente corroborar um processo de precursoridade, inovação e renovação que sempre caracterizaram a cidade.

Os migrantes, radicados , pioneiros
que são,
José de Alencar
Bernardo Guimarães
Aureliano Lessa
José Bonifácio de Andrada e Silva
Luiz Gama
José Vieira Couto de Magalhães
Fagundes Varela
Júlio Ribeiro
Castro Alves
Inglês de Sousa
Ezequiel Freire
Teófilo Dias
Raimundo Correia
Euclides da Cunha
Olavo Bilac
[1] Olavo Bilac , em palestra proferida em 1907, em São Paulo, sentenciou : “Há quarenta anos, não havia propriamente homens de letras no Brasil: havia estadistas, parlamentares, professores, diplomatas, homens de sociedade ou homens ricos, que de quando em quando invadiam por momentos o bairro literário (...) Que fizemos nós? Fizemos isso : transformamos o que era então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio(...)Tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade”.

Nenhum comentário: