quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

São Paulo, 455 anos - V

A cidade modernista

A realização da Semana de 22 apenas reuniu e apresentou a um público bastante restrito - e escandalizado - alguns dos artistas que já vinham cultivando modernas formas de expressão, entre eles Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Menotti del Picchia, além de Graça Aranha, na época autor consagrado e membro da Academia Brasileira de Letras, que usou seu prestígio para apresentar os jovens modernistas. Também participaram da Semana o músico Villa-Lobos, a pintora Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret, entre outros.
Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".
A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas— em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico , os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais : a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país.
Eram unânimes no combate às estéticas parnasiana, realista e romântica .O parnasianismo é descartado enquanto gênero literário ultrapassado por aprisionar a linguagem nos cânones rígidos da métrica e da rima. A liberdade de expressão é a bandeira de luta do movimento, que reivindica a criação de uma nova linguagem, capaz de exprimir a modernidade.Também o realismo é criticado, na medida em que incidiria sobre valores tidos como retrógrados, tais como o cientificismo — a utopia é uma dimensão do real, porque não é apenas sonho, mas também um protesto. Assim, o ideal figurativo, a extremada ênfase no realismo são considerados barreiras à criação artística : associa-se realismo a pessimismo, observando que os autores realistas dão sempre uma visão distorcida do nacional. Distorcida por sobrecarregar seus aspectos negativos, gerando sentimentos de derrota e incapacidade.
A objeção ao romantismo incide na ênfase que este dá ao sentimento, na sua tendência à tragédia e à morbidez. combate-se o romantismo argüindo a necessidade de atualização do ser nacional. No entanto, esta atualização assume um tom às vezes dramático e dilacerante quando sente-se
“(...) uma necessidade instintiva de apunhalar (...) esse quase duende (...) que, de
quando em quando, surge à tona do (seu) ser atualizado para relembrar o país
sempre intimamente sonhado da cisma e da sentimentalidade

[Menotti del Picchia, "Uma carta", Correio Paulistano, 1 julho 1922]
Na crítica ao romantismo e a todo seu corolário de valores (devaneio, escapismo,culto à natureza, boemia) esboça-se a ética do homem empreendedor, ideologia típica dos países europeus no começo do processo de industrialização. Por isso,ao mesmo tempo,exige-se uma nova consciência social capaz de refletir a complexidade do mundo moderno.
Duplo vértice histórico, a Semana de Arte Moderna de 1922 fazia o Brasil integrar-se definitivamente no contexto filosófico-estético-cultural do século XX e inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado, com “a estabilização de uma consciência criadora nacional, preocupada em expressar a realidade brasileira ; a atualização intelectual com as vanguardas européias; o direito permanente de pesquisa e criação estética”. A partir de 1922 caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional —e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro.Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.
Adotando como preceitos e princípios, “a desintegração da linguagem tradicional , adoção de linguagem coloquial e liberdade de expressão; a incorporação do cotidiano e busca da expressão nacional ; a assimilação das conquistas das vanguardas e inovações técnicas como o verso livre” , os modernistas "passaram por cima das distinções entre os gêneros, injetando poesia e insólito na narrativa em prosa, abandonando as formas poéticas regulares, misturando documento e fantasia, lógica e absurdo, recorrendo ao primitivismo do folclore e ao português deformado dos imigrantes, chegando a usar como exemplo extremo contra a linguagem oficial certas ordenações sintáticas tomadas a línguas indígenas". Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro o primitivismo, elemento primordial da cultura brasileira que proporcionaria a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no País. Criaram uma nova versão sobre nossa formação étnica diversa da clássica teoria da "trindade racial" composta pelo branco, o negro e o índio.A visão que escritores como Mário de Andrade, Oswald Andrade, Alcântara Machado, por exemplo, têm da presença italiana na Paulicéia é importantíssimo de ser analisado à medida que o movimento modernista propunha que se passasse a extrair temas da realidade concreta, do folclore e da cultura brasileiras, em seu sentido mais amplo. Os escritos literários, de prosa e poesia modernista, além de crônicas, cartas, apontam elementos de fusão étnico-cultural em que realidade e ficção se fundem — o humano resgatado das ruas de uma São Paulo em transformação constante para povoar as páginas de uma produção literária igualmente em processo de transformação.
E não se pode deixar de considerar uma das peças mais sutis já escritas sobre a cidade, na saudação emocionado, ‘de corpo presente’, do poeta franco-suiço Blaise Cendrars em meados da década de 1920, em contato estreito com os futuros modernistas — são lendários seus encontros, suas tertúlias intelectuais, as viagens a Minas Gerais, às cidades históricas, à Amazônia.Ele era naquele momento o poeta mais importante no contexto da arte moderna (membro do grupo de artistas associados ao circulo de Picasso, ele e Apollinaire haviam criado a poesia cubista; após a Grande Guerra ligou-se a Jean Cocteau, Fernand Léger, Darius Milhaud e aos Balés Russos de Diaghilev, empolgando a cena parisiense e o mundo da cultura). Segundo Nicolau Sevcenko, que ele tenha se apaixonado por São Paulo, para onde voltou várias vezes , “diz muito e talvez o essencial sobre o sentido histórico da cidade” — e de sua inserção, não apenas ambiental, no Modernismo brasileiro e historicamente,desde seu primórdio, na própria História e na cultura do País.
"Eu adoro esta cidade.
São Paulo é como o meu coração
Aqui nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno
Só contam esse apetite furioso essa confiança absoluta
Esse otimismo essa audácia esse trabalho esse esforço
Essa especulação que faz construir dez casas por hora
De todos os estilos ridículos grotescos belos grandes pequenos
Norte e sul egípcio yankee cubista
Sem outra preocupação que a de seguir as estatísticas
Prever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia e
Atrair uma enorme imigração
Todos os países
Todos os povos
Eu amo isso..
."

Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento.Oswald de Andrade lançou, em 1924, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, que enfatizava a criação de uma poesia baseada na revisão crítica do passado histórico e na valorização da pluralidade cultural brasileira. Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo reagiram com o movimento “Verde-Amarelismo”, que propunha uma nacionalismo mais ufanista; em 1927, o grupo se transformou na Escola da Anta, tomando como símbolos de nacionalidade o índio tupi e a anta. No ano seguinte, Oswald, Raul Bopp e Tarsila do Amaral revidam o nacionalismo xenofobista da Anta com o Manifesto Antropófago, que incorporava o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo, e pretendia "devorar" as influências estrangeiras, aproveitando suas inovações artísticas, mas imprimindo a identidade cultural brasileira à arte e à literatura.
Há de se enfatizar o interesse dos intelectuais, escritores e artistas do Modernismo pela psicanálise e pelas teorias então insurgentes de Freud : ao longo da década de 1920 os modernistas exploram as teses freudianas nos principais textos e revistas do movimento, e em muitos de seus textos de ficção (além de Mana Maria,por exemplo,o romance Salomé, de Menotti del Piccha , é nitidamente inspirado de Estudos sobre a histeria,de Bleuer e Freud ; os conceitos de pulsão, consciente e subconsciente, e sexualidade aparecem em Paulicéia desvairada, em Amar, verbo intransitivo e em Macunaíma , de Mário de Andrade; de Oswald de Andrade —leitor “compulsivo”, segundo ele, de Totem e tabu e de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud —encontram-se referências à doutrina freudiana não só na Revista de Antropofagia mas também nos manifestos "Pau Brasil" e "Antropófago",e em Um homem sem profissão e em Memórias sentimentais de João Miramar; e a primeira tradução brasileira de um texto de Freud. "Cinco lições de Psicanalise", feita pelo psiquiatra mineiro chamado Hilario Pimentel, apareceu em A Revista, editada por Carlos Drummond de Andrade no final da década de 1930).Segundo os estudiosos, nada mais coerente pois os modernistas “estavam todos voltados para as vanguardas européias", e a Semana de 22 vingou rapidamente porque “da mesma maneira que as idéias de Freud , era libertadora e correspondeu a um espírito daquele período". no começo da década de 1920, observa Nicolau Sevcenko , “os intelectuais paulistas parecem divididos entre o desejo de modernidade e a crença no progresso e no futuro de um lado e, o medo, a angustia e a incerteza de outro, daí a enorme curiosidade sobre as teorias de Freud e sobre temas como sexualidade, agressividade, misticismo, feminismo , tratados à luz da psicologia social e da psicanálise” .
Escusados os elementos de cunho claramente ideológicos, o confronto entre as duas correntes se dá no plano estético-artístico em torno de concepções como “cosmopolitismo x regionalismo”, entre outros aspectos.Contrapõem-se , por exemplo, o esforço de Mário de Andrade para superar a concepção geográfica do espaço em Macunaína(1928) à “geografização da realidade” presente em Martim Cererê(1926), de Cassiano Ricardo , em que “a epopéia bandeirante realiza a ‘paulistanização’ do Brasil”. Para os verde-amarelos, São Paulo se apresenta como o cerne da nacionalidade brasileira, justamente pela sua configuração geográfica, foi São Paulo que deu início ao processo nacionalizador, “cabe a São Paulo, portanto, coordenar todas as vozes regionais, assegurando a comunhão brasileira”. São Paulo corporificaria a própria idéia de nação.
Deflagrada a efervescência de 1922, pode-se afirmar que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924 , ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada — e seu livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Adiante, o ano de 1928 representou uma ‘encruzilhada’ decisiva : revelou-se uma certa impotência da corrente antropofágica para promover a grande transformação implícita em seus princípios no que se propunha a fazer, enquanto o Verde-amarelismo prenunciou e ativou as divisões políticas que viriam na década de 1930. Foi em 1928 que se deu a publicação de Macunaíma, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e a publicação de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.

Os modernos
Durante o Modernismo
Artífices e dinamizadores da maior revolução cultural perpretada no País, a partir da Semana de Arte Moderna, em São Paulo e de São Paulo paulistas de nascimento ou radicados irradiaram sua arte para todo o Brasil — a começar por Mario de Andrade.
E com ele ,Oswald de Andrade, Menotti del Picchia ,Cassiano Ricardo ,Raul Bopp , Ian de Almeida Prado ,Ronald de Carvalho, Plínio Salgado, Patrícia Galvão (a Pagu)— que nos moldes pioneiros da cidade, criou um “romance operário”, Parque industrial.
E ao lado— mas não à margem — da explosão renovadora, a prosa e o verso de Ribeiro Couto, de Guilherme de Almeida, de Guilherme Figueiredo ; a contemporaneidade de Amadeu de Queiroz, Enéas Ferraz, Orígenes Lessa, Paulo Emilio Salles Gomes (notório ensaísta e articulista, mas também ficcionista em Três mulheres de três p), Ibiapaba Martins, João Machado, Albertino Moreira, Hernani Donato,Ondina Ferreira .

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