sábado, 24 de maio de 2008

Telenovela e Literatura


atual cartaz no horário das 18 horas, na Rede Globo de Televisão, “Ciranda de pedra” é adaptação(pela segunda vez:a primeira foi em 1981 ) do romance de estréia de Lygia Fagundes Telles -- a meu juízo, uma das cinco maiores ficcionistas da literatura brasileira contemporânea(as outras : Rachel de Queiroz;Clarice Lispector:Maria Alice Barroso: Lya Luft –só a excepcional romancista e contista, não a de Perdas e ganhos,que é literariamente sofrível).


A condição humana em Ciranda de pedra
o primeiro romance de Lygia Fagundes Telles, escrito em 1954, trata de temas recorrentes em toda sua obra ficcional ,como o amor, a morte, a fragilidade da alma humana, a solidão, a loucura, o sonho -- além de outros dos capitais assuntos que habitam os romances e contos da escritora :a família, a conjuntura social (que , se influi nos atos das personagens, quase nunca coincide com o que se passa em seu interior ), a religião e o sexo (e nestes , a rarefeita opção para aqueles que querem harmonizá-los : alguns se entregam aos vícios do mundo, embora saibam-nos vazios e pouco compensadores, outros se entregam a uma fé estóica).
Lygia baseou-se num fato real para escrever Ciranda de pedra : numa de suas caminhadas a pé, passou em frente a um casarão que estava sendo demolido; entrou, passeou pelos cômodos vazios e encantou-se com uma fonte cercada por uma ciranda de anões de pedra com uma , que descreve no livro e o intitula, e imaginou os dramas que se desenrolaram naqueles jardins, as tristezas e alegrias que envolveram os antigos habitantes daquela casa.
O romance conta justamente a história de uma família que se desagregou com a separação dos pais: uma das filhas, Virginia – protagonista principal ,em torno da qual estrutura-se e desenrola-se a trama -- passa a morar com a mãe (Laura) e o segundo marido dela (Daniel) numa casa pequena e desconfortável, enquanto as outras duas meninas (Bruna e Otávia) permanecem com o pai(Natércio) num casarão cercado de riqueza e conforto.
Como em toda sua ficção, Ciranda de pedra é uma incursão corajosa e sensível a uma complexa situação familiar, ao acompanhar a trajetória de Virgínia com perfeito delineamento psicológico das personagens e linguagem precisa,em estilo por vezes coloquial – mas na linguagem só aparentemente coloquial de Lygia Fagundes Telles e no seu olhar sobre as coisas perpassa sempre uma ironia de matizes afetivos e uma ambiguidade bem patente, por exemplo, no dissolver da oposição entre o bem e o mal ; ambiguidade e ironia que,de resto, são dois traços marcantes da escrita da autora, desde o romance inaugural , passando por As meninas, obra de uma juventude empenhada nas lutas da década de 1960, até ao deslumbramento de A noite escura mais eu, uma extraordinária reflexão sobre a morte.
A obra de Lygia, contudo, não abriga qualquer tipo de determinismo social , mas sim a influência que o meio desempenha em cada pessoa, bem como a luta personalíssima travada para afirmação individual. Parte de seu encanto literário vem exatamente da fina argúcia para este desabrochar da personalidade, tema tão bem tratado em cada um de seus romances.Suas personagens parecem manter uma conduta condizente com seu papel na sociedade. Vestem a máscara social que lhes cabem e atuam coerentemente com essa identidade pela qual são conhecidas – mas apesar deste aparente comportamento de certo modo estereotipado, mantêm vida interior das mais intensas .
As personagens femininas de Lygia retêm o foco dessa análise psicológica profunda .Apresentada no início de sua carreira como adepta da ficção introspectiva, sofreu comparação inevitável com Clarice Lispector, de quem seria uma espécie de herdeira menor : embora desde o início Lygia revelasse gosto pela análise psicológica e pela criação de personagens femininas, normalmente vistas a partir de narrativas em primeira pessoa, sempre demonstrou uma originalidade resultante da síntese -- que realiza como poucas escritoras -- entre uma arguta visão da interioridade feminina e a convincente construção de um mundo objetivo.
O que se dá plenamente em Ciranda de pedra, conciliando a refinada análise psicológica, a desintegração das formas realistas convencionais, a criação de um novo realismo, então inovador , e a elaboração de um painel de época. No romance, Lygia cria individualidades ricas e complexas e, simultaneamente, lhes dá representatividade histórico-social, sob um universo ficcional vigoroso e coerente graças a um ousado—já para a época -- processo de técnica romanesca, deslocando constantemente o foco narrativo para cada um das três jovens (Virginia,Bruna e Otávia) , valendo-se a de monólogos interiores e apresentando, cada qual, os seus dramas íntimos e a sua visão de mundo : Lygia constrói um jogo de espelhos que retoma e repete (de outro ângulo) a realidade vivida pelas personagens, em contínuos fluxos de consciência que estruturam a fisionomia moral e psicológica das três moças.
Segundo Antonio Candido, Ciranda de Pedra seria o marco da maturidade intelectual de Lygia , observando ainda o quanto o mundo de ficção lygiano expõe a complexidade da vida humana ao mesmo tempo em que constrói uma obra comprometida com a condição humana nas suas desigualdades sociais.

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