sábado, 10 de maio de 2008

Mãe, em duas versões literárias


Neste comemorado ‘Dia das mães’, vale lembrar duas criações literárias , de dois excepcionais escritores, que ao reportarem-se ao tema têm , cada uma das criações, características específicas – uma, registra exatamente 150 anos de existência , outra inaugura uma atividade diferenciada e anuncia uma teoria .
A peça “Mãe”, de José de Alencar – que, para quem não sabe, foi também dramaturgo, e dos mais produtivos e polêmicos -- foi escrita em 1858, encenada no início de 1859, no Rio de Janeiro, e publicada por Paula Brito em 1860 : é das mais representativas do teatro abolicionista do século XIX,ainda que tenha o aspecto de melodrama amoroso.
O poema “Minha mãe” foi dado a lume por Machado de Assis em
A Marmota Fluminense, em 2 setembro 1856 , na verdade uma tradução, a primeira de uma profícua atividade ,pouco conhecida e reconhecida, de Machado : é o exercício inicial de uma teoria tradutória machadiana em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada e adotada pelos conceitos de Teoria Literária do século XX.

“Mãe”, de José de Alencar

A posteridade consagrou José de Alencar como o mais brasileiro dos escritores românticos, o mais empenhado em dotar o país de uma nacionalidade literária – e com o mesmo empenho, e competência, dedicou-se também à criação do teatro nacional. A carreira de dramaturgo de Alencar foi pontuada de sucessos e fracassos, sobretudo por suas rumorosas polêmicas travadas com a polícia, com os críticos, com o Conservatório Dramático e até com um empresário teatral.
Aqueles acostumados com a imagem de Alencar como escritor substancialmente romântico surpreendem-se com peças alencarinas , como p. ex. “O demônio familiar" e “As asas de um anjo", que revelam um autor polêmico e incisivo, tratando de dois temas difíceis em seu tempo : na primeira, cujo sucesso foi extraordinário, a escravidão doméstica lhe dá material para execrar este costume das famílias brasileiras; na segunda, o tema da prostituta regenerada pelo amor é abordado de forma nada convencional, o que, aliás, contribuiu para que a peça fosse proibida pela polícia imediatamente após as três primeiras apresentações,considerada imoral e uma afronta aos bons costumes.. Na visão do pesquisador Flávio Aguiar, José de Alencar foi provavelmente o primeiro intelectual orgânico da dramaturgia brasileira moderna.
A peça “Mãe” desenvolve-se em torno de um filho pobre que penhora a mãe escrava – prática comum à época – para salvar o pai da namorada que ameaça suicidar-se por causa de dívidas (o dinheiro , sempre na temática alencarina)

Mãe
drama em quatro atos
à minha mãe e minha senhora D. Ana de Alencar
Mãe,
Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.
Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.
Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares ai uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem.
Acharás neste livro uma história simples; simples quanto pode ser.
É um coração de mãe como o teu. A diferença está em que a Providência o colocou o mais baixo que era possível na escala social, para que o amor estreme e a abnegação sublime o elevassem tão alto, que ante ele se curvassem a virtude e a inteligência; isto é, quanto se apura de melhor na lia humana.
A outra que não a ti causaria reparo que eu fosse procurar a maternidade entre a ignorância e a rudeza do cativeiro, podendo encontrá-la nas salas trajando sedas. Mas sentes que se há diamante inalterável é o coração materno, que mais brilha quanto mais espessa é a treva. Rainha ou escrava, a mãe é sempre mãe.
Tu me deste a vida e a imaginação ardente que faz que eu me veja tantas vezes viver em ti, como vives em mim; embora mil circunstâncias tenham modificado a obra primitiva. Me deste o coração que o mundo não gastou, não; mas cerrou-o tanto e tão forte, que só, como agora, no silêncio da vigília, na solidão da noite, posso abri-lo e vazá-lo nestas páginas que te envio.
Recebe, pois, Mãe, do filho a quem deste tanto, esta pequena parcela da alma que bafejaste.
J. de Alencar
Rio de Janeiro, 1858


Machado de Assis tem em seu ‘curriculo’, 48 textos traduzidos entre 1856 e 1894 : estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine; seguiram-se 16 peças de teatro , 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até 1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine e o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia de Dante.
Em sua ação tradutória Machado não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo , e ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica." : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’, ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas, foi ele também um precursor.

Minha mãe
(imitação de Cowper *)
Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
Viver feliz com minha mãe tambéml
C.A.de SÁ
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
Dourou: - é minha mãe!
Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-Ia? - Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Eesse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
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* William Cowper(1731-1800), poeta inglês

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