terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Réquiem a um gênio


antes que se encerre 2007,não se pode deixar de registrar os 85 anos de morte de um dos maiores escritores brasileiros. só que na verdade Lima Barreto não morreu em 1 novembro 1922 : Lima Barreto tem seu nome e sua obra imortalizadas no cenáculo mais elevado da cultura nacional. escrevi acima "registro", mas não é -- e sim uma homenagem,um tributo,um réquiem..


O conto em Lima Barreto
Como contista, Lima Barreto não chegou a ser um virtuose, mas produziu pequenas obras-primas da narrativa curta, como “O homem que sabia javanês”, “A nova Califórnia”, “A sombra do Romariz”, “O moleque”, “O número da sepultura”, “A biblioteca”. Virtuose não podia ser, porquanto a par de outros aspectos ,era conscientemente praticante de uma escrita diferenciada de seus pares, até porque ele mesmo diferenciado literária,ideológica e socialmente dos contemporâneos.
Seus contos, em maior ou menor grau, são exemplos de relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades do denominado conto moderno. Fogem ,todos eles, a parâmetros estabelecidos para o gênero ; mantêm,sob a qualidade literária intrínseca , amplitude e coerência temáticas e estilísticas presentes de resto em toda sua obra ficciona l- nos romances e nas novelas – e em seus artigos e crônicas . Alta qualidade e perfeita coerência que combinadas, como se sabe, caracterizam todo grande Autor.
Impôs na ficção literária,em especial na seara contística — com seu estilo simples, direto e objetivo
[1], que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo a seguir rompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” [2]
Não mais fosse por outros argumentos, mormente por motivos ideológicos, foi criticado [por vezes e por alguns ainda é] pelas “imperfeições de estilo” e pelo “tom caricatural” com que retrata seus personagens. De uma vez por todas convém esclarecer que os exemplos de “erros gramaticais” apontados em sua obra ficcional não caracterizam necessariamente um desconhecimento das regras do escrever, e sim o que especialistas configuram como “concordância ideológica”. Segundo o professor e filólogo Silva Ramos defeitos e irregularidades em Lima Barreto decorrem não de uma ‘imperícia gramatical’ mas provêm de uma escolha feita pelo autor, dentre mais de um processo de expressão,que possibilita a tradução de seu pensamento ou sentimento : não são as palavras, a ordem em que são dispostas que valem, mas as idéias que exprimem, os sentimentos que fazem vibrar. “Lima Barreto não sabe é alinhar palavras vazias de sentido que só encantem pela sonoridade de expressão. Jamais consentiria ele que um vocábulo soasse oco e não revestisse uma noção. A verdade é que nos tempos que correm já se não compreende que alguém pegue uma pena se não tiver alguma coisa para dizer. É que não nos contentamos mais com palavras, queremos idéias ; e seus romances,novelas e contos obrigam a pensar” [ carta de 21.06.1919 ]. Para o crítico Antônio Arnoni Prado, “Lima Barreto sempre soube fazer uso abrangente da linguagem, rica de comunicação e de recursos expressivos, para a comunicação militante de sua arte, jogando com as palavras para delas extrair os efeitos estéticos ou funcionais que a natureza do texto exigisse”
[3]. Antonio Candido vaticina que em Lima Barreto vê-se “um projeto literário elaborado, pelo menos em tese, de forma bastante orgânica, ou seja, a escolha de uma forma determinada para o tratamento de temas específicos” [4]. Para Alceu de Amoroso Lima, “(Lima Barreto) escrevia literalmente ao correr da pena, porque fugia a todo vernaculismo intencional; a palavra lhe vinha sempre fácil e correntia,natural e transparente”[5]
A tal ‘superficialidade’, implícita no ‘tom caricatural de seus personagens’, encontra resposta à altura em Lucia Miguel Pereira
[6] , para quem Lima Barreto, tem sua escrita contística caracterizada por “explorações em profundidade, suas criaturas sempre indagando a existência” ;ela própria admite que Lima Barreto “logrou conciliar a agudeza analista e o sentimento poético porque possuiu a ambos em alto grau”.
Importante lembrar que a época era dominada por duas vogas literárias, de um lado o parnasianismo, inócuo, oco e ressonante, de outro, a linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — ambas, uma literatura impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante.No Rio de Janeiro, os intelectuais e literatos,de certa forma alheios às contradições, logo se integraram ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos — no que, delinearam o movimento literário da chamada belle èpoque carioca, com sua conhecida ‘geração boêmia”, definida por “uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo-)refinada, de temática elitista”,e com aquela escrita aristocrática, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto
[7], João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho,Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase “o Rio de Janeiro civiliza-se!”), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo mundano, meio jornalístico, pretensamente sofisticado,como apregoado por Afrânio Peixoto : “A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação(...)”.[8]
No pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então e aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”. Segundo o historiador e ensaísta Nicolau Sevcenko, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais”
[9].

Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então, Lima Barreto era o anti-acadêmico por excelência, já então conhecido e reconhecido pela publicação das 2ª. edição e 3ª. edição (as primeiras feitas no Brasil : a 1ª. edição do livro foi impressa em Portugal, em 1909) de Recordações do escrivão Isaias Caminha e por Triste fim de Policarpo Quaresma ,, digno de admiração e respeito como um dos grandes autores da época, mesmo ostentando de certa forma a imagem e o conceito de ‘escritor maldito’. Exemplos claros da literatura diferenciada e de alta qualidade que fazia, Lima Barreto foi agraciado com extremas consideração e atenção por parte de intelectuais e escritores importantes , como p. ex. Monteiro Lobato, que a ele solicitou colaboração na Revista do Brasil e dele publicou a 1ª.. edição de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá – o primeiro, talvez único de seu livros ,enquanto ele viveu, a receber tratamento editorial-gráfico de qualidade.

Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes dessa escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do “sorriso da sociedade” , Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido : as idéias contidas no artigo “Amplius!”, publicado originalmente no primeiro número da Floreal , em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos (em todas suas 3 edições), expressam suas concepções sobre a arte literária.
“(...)Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestosé deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum edependente entre si.A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maioresmanifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todasas raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maiorglória e perfeição da humanidade. (...) Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam ; digamos não a uma literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e políticos” (...) “a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”
[10]
Além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante, Lima Barreto rejeitava terminantemente fazer de seu trabalho jornalístico assim como de sua obra literária, ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentava que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época(...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza”
[11]. Dono de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única conferência literária que iria pronunciar , mas acabou não fazendo — “O destino da Literatura”, em Rio Preto, São Paulo, em fevereiro de 1921 [12], por insistência de Ranulfo Prata — foi explícito :
“A Beleza não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora. A importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, e também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida”
[13]
Esse ideal, entendia “ser impossível cumprir sob a égide acadêmica. Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’ ,para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio.A “esperança”, mencionada naquela entrevista de fevereiro de 1916,alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.
Na obra de Lima Barreto, consciente como era das questões cruciais de seu tempo, a amplitude de temas é acoplada a uma função crítica, combatente e ativista de seus textos. Uma obra que inclui em seu temário: movimentos históricos, relações sociais e raciais, transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, ideais sociais, políticos e econômicos, crítica social, política, moral e cultural, discussões filosóficas e científicas, referencias ao cotidiano urbano, a política nacional e internacional, a burocracia, análises históricas. Politizado, sua preocupação maior é abranger o mais que pode, no maior volume e amplitude possíveis, a realidade social brasileira, quer na literatura ficcional quer na não-ficional, distribuída por romances, contos, crônicas, sátira, epistolografia e memórias.
Quer na obra não-ficcional, quer em seus romances e novelas, quer nos contos — em que se denotam os mesmos eixos temáticos em torno dos quais desenvolve-se sua obra romanesca e sua obra não-ficcional : a política; a mulher; o cotidiano da cidade; a vida literária — Lima Barreto não deixa de perceber,registrar e comentar nenhum dos acontecimentos mais importantes da época,essencialmente as contradições da pretensa modernidade que se dizia ser implementada com o regime republicano brasileiro. Como um vasto painel desdobrado em quadros sucessivos, nos escritos de Lima Barreto estão os episódios culminantes da insurreição anti- Floriano, a campanha contra a febre amarela, a ação de Rio Branco, o governo Hermes da Fonseca, a I Guerra Mundial, as eleições, as greves operárias, a visita do Rei Alberto ,a Semana de Arte Moderna, a carestia da vida, o arrivismo, a especulação financeira, o capitalismo, a reforma urbana, o ‘bota-abaixo!’, o cotidiano da cidade, o futebol e o jogo-do-bicho, o carnaval, o cinema, os crimes ditos passionais, o advento do feminismo
[14].
Nos contos de Lima Barreto estão contidos os traços recorrentes de sua obra ficcional, registra Sevcenko
[15] : obsessão da origem, marcas da religiosidade, evocação do mistério e da surpresa , emocionadas descrições dos subúrbios cariocas, as periferias urbanas, a divisão de classes, a exclusão social, os pobres e os enjeitados, os traços da raça (nestes, suas denúncias ao contexto cientificista e darwinista predominante desde a década de 1870, teorias em crescente absorção por parte da maioria dos intelectuais, inclusive Euclides da Cunha, de uma “hierarquia entre povos e indivíduos apoiada por conceitos da ciência comprometida com pressupostos ideológicos, determinada por vetores da evolução natural e determinantes dos quinhões de talento, inteligência e senso moral”[sic]).

Sua obra contística – no mesmo diapasão da romanesca e da jornalística — constitui um conjunto de registros variados do Brasil , sempre emocionados e opinativos, geralmente irados, quase sempre sarcásticos, satíricos, irônicos — chegando à radical crítica alegórico-figurativa nos “contos argelinos”, nos textos de Os Bruzundangas e em Coisas do Reino de Jambon e especialmente nos “contos argelinos”.
[16] Sucedem-se nos textos barretianos flagrantes urbanos, o bovarismo das elites dirigentes e dos diplomatas (e do brasileiro em geral), as elites econômicas, a burocracia. Poucos escritores, na literatura brasileira , criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado e vasto – homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder , pseudo- intelectuais abarrotados de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e “ignorantes das coisas da guerra”, os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas , pequenos burgueses, arrivistas,charlatães,almofadinhas, melindrosas,aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos,bêbados, meliantes, prostitutas,mandriões,subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários, moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários, estrangeiros.
­­­­­­­ E como é inerente a um grande narrador/comentarista de costumes, o que nunca deixou de ser também nos textos ficcionais, Lima Barreto cria e recria situações da existência humana,desfila personagens insólitos, exóticos e comuns – mas intensos e vívidos -- e destila sua demolidora ironia em contos permeados ,uns de amarga crueza outros de franco lirismo, como os celebrados “A Nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês”, como o antológico “O moleque”, como “Uma noite no Lírico”, “Como o homem chegou”, “Agarius auditae”, “Um músico extraordinário”, “Mágoa que rala”, “A barganha”, “O único assassinato do Cazuza”, “Manel Campineiro”, “Milagre de Natal”, “Foi buscar lã...”,”O jornalista”, “O tal negócio de ‘prestrações’...”, “O meu carnaval”, “Fim de um sonho”, “Lourenço, o Magnífico”, “O pecado”, “Um que vendeu sua alma”, “porque não se matava”, “Uma conversa”, “O caçador doméstico”, “Dentes negros e cabelos azuis”, “A indústria da caridade”.
Opositor irascível, implacável e demolidor da República, utilizando ad nauseam os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, do humor cáustico,da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém-implantado.As mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime, não se cansou de causticá-las por toda sua obra. Crítico intransigente dos presidentes republicanos, da intervenção dos militares na política, de formas de governo autoritário e ultracentralizado e militarizado , de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias intolerantes, temas e itens como os “métodos de dominação surgidos na República, com aliança entre a aristocracia rural e os financistas da burguesia emergente”, a “atuação elitista da oligarquia cafeeira de São Paulo”, as “críticas à artificialidade e falso poder dos títulos acadêmicos, à futilidade da literatura ‘aristocrática” estão difundidos por 47 contos ,de explícito teor político(quase a metade de sua produção de narrativa curta) — entre eles, preciosidades como “Sua Excelência”,“Congresso Pan-planetário”, “O feiticeiro e o deputado”, “A matemática não falha”, “A sombra do Romariz”, “O falso Dom Henrique”, “Eficiência militar” — e em especial nestes “contos argelinos”, que destacam-se no conjunto por peculiaridades muito específicas.
Mauro Rosso
[extraído da obra do autor , Os “contos argelinos” : Lima Barreto, a política, o patrimonialismo, a literatura militante ]

[1] a escrita barretiana, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, teve apenas uma única exceção : no conto “Como o ‘homem’ chegou”, incluído no apêndice da 1a. edição de Triste fim de Policarpo Quaresma ( Typographia Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro, 1915), utiliza propositadamente uma linguagem ‘empolada’, por vezes cansativa, repetitiva — só que sob evidente intuito de ironia e sátira, com “uma função anti-retórica,ou seja, complicada de propósito parece indicar ela mesma que o melhor caminho é a simplicidade”, observa o crítico Antonio Arnoni Prado(1980, p.81).
[2] artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11.11.1948(p. D-5) : nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a ‘descoelhonetizar’ a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números.
[3] Prado(1998,pp. 44-45).
[4] Candido (1976,p.D -3; 1987,p.63)
[5] Amoroso Lima (1949, p.51)).
[6] Miguel Pereira (1950, p. 184).
[7] como exemplo ilustrativo da frivolidade dominante ,proliferavam então as conferências literárias : eram de Coelho Neto ,de Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, as mais concorridas conferências 11 , predominante a presença de senhoras e mocinhas para ouvirem palestras sobre “a água”, “o fogo”, “a noite”, “a tentação”, “o dia”, “a rua”, “a mão e o pé” (cf. Miguel-Pereira,op.cit., p.75) [. Em Recordações do escrivão Isaias Caminha , Lima Barreto refere-se às conferências de Coelho Neto, encarnado no literato Veiga Filho : “(...) – Veiga, disse Floc depois dos cumprimentos, gostei muito de tua conferência. Foi uma epopéia, uma ode triunfal ao grande corso !(...) E quanta gente ! Muitas senhoras, moças, gente fina... Estavam as Wallestein, as Bostocks, as Clarks Walkovers... Podes-te gabar que tens o melhor auditório feminino da cidade... Nem o Bilac (...)”
Coelho Neto então sobressaía como “a grande presença literária entre o crepúsculo do Romantismo e a Semana de 22 e de acordo com estudiosos da literatura brasileira ninguém como ele encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma : romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu . Com tais ‘deficiências’ Coelho Neto morreu — sustenta José Veríssimo — “sem descobrir que querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onomatopaicos, só conseguia imprimir à sua obra um cunho falso de artificialismo” [Veríssimo ( 1916, p. 143)]
[8] Peixoto (1940, p.79)
[9] Sevcenko (1983,p.217 ).
[10] Histórias e sonhos(1920,p.5 ); Histórias e sonhos (1951,p.9); CLBFB,v. VI (1956,p.7)
[11] Impressões de leitura(1953,p.65); Coleção Lima Barreto,v. XIII (1956,p.7)
[12] publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921.
[13] Bagatelas (1923, p.69); Coleção Lima Barreto, vol. IX (1956,p. 83).
[14] nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto por exemplo não poderia ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade : escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas [ainda que sob um caráter de ambigüidade,ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo ; dizia-se “antifeminista”, punha-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defendia a necessidade de instrução para a mulher ; repelia o ingresso da mulher no serviço público (“... rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das operárias ?...”), mas era a favor do divórcio ; imbuído da moral do seu tempo, retratava a mulher pela ótica comum, mas denunciava sua “absurda” situação de dependência aos homens. Longe, muito longe portanto encontra-se ele da falsa, equivocadissima acusação de misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista brasileiro — o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano. Sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra não-ficcional e ficcional : retratou-a e a fez protagonista nos romances e novelas — haja visto Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília em Diário íntimo , Edgard e Ângela em Numa e a ninfa — e em contos como “Um especialista”, “O filho da Gabriela”,”Um e outro”,”Miss Edith e seu tio”,”Cló”,”Adélia”,”Lívia”,”Clara dos Anjos”,”Uma vagabunda”,”Uma conversa vulgar”,”O número da sepultura”,”Quase ela deu o sim, mas...”,”Numa e a ninfa”,”A cartomante” “O cemitério”,”Na janela”, “A mulher do Anacleto” [ cf. Rosso ( 2005)].
em outro viés, no cotidiano da cidade, estão suas tiritatibes ficcionais e não-ficcionais sobretudo contra o futebol — visto por ele como ‘instrumento e meio de estrangeirismo’, de assimilação de elementos, valores e hábitos copiados em prol de um “pretenso,falso, artificial e detestável progresso bem a gosto desta República de bacharéis e aristocratas” : além de muitos artigos e crônicas, o futebol é criticado irônico-sarcástico-impiedosamente em contos como “A biblioteca”,”Quase ela deu o sim, mas...”, “A doença do Antunes” [ cf. Rosso(2006)].
[15] Op.cit., p.189.
[16] nesse particular ,vale observar que o início do século XX e o advento da República evidenciaram um nítido fim do que se poderia denominar ‘período artístico’ na literatura brasileira, a sutil ironia machadiana sendo substituída pela amarga sátira, uma sátira que não hesita em converter-se em impiedoso sarcasmo— mas ninguém, à época, assim o entendeu,assimilou e praticou como Lima Barreto.
se Machado Assis foi intérprete crítico do Império((mas não exclusivamente), Lima Barreto foi o crítico da República – ambos utilizando, em modos,formas e graus específicos, o humor , em ambos funcionando como o elemento-chave da construção formal, a ironia bem visível tanto na obra de Machado de Assis (neste, como uma reflexão pessimista relativa à vida como um todo) quanto na de Lima Barreto (nele, presente o que o crítico canadense Northrop Frye chamou de “ironia militante” )

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