quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

contemporâneo da posteridade-II


(continuação)

A grande novidade foi justamente “o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”, o que coloca Euclides no lugar de “pai fundador da sociologia no Brasil”, pois segundo Antonio Candido “toda a onda [da voga sertaneja] vem quebrar em Os sertões, típico exemplo de fusão, livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, que assinala um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira, no caso as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior”.
Os sertões emblematiza ainda a retratação do cientificismo de Euclides, de seu determinismo geográfico e racial, emprestado do darwinismo social --- cientificismo ,de resto, comum a toda sua geração, emprestado do ‘darwinismo social’(gerado pela publicação do livro A origem das espécies, de Charles Darwin em 1859) , propugnante da tese de superioridade de raça,o conceito de raça ultrapassando o campo da biologia, se estendendo à cultura e à política . A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo ; recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Ao lado da influência de Comte, o evolucionismo de Darwin e de Spencer dispôs Euclides a aceitar, com excessiva confiança, as "leis" sobre os caracteres morais das raças que tanto acabariam pesando na elaboração de Os sertões.
Euclides da Cunha já havia atingido um alto estágio de amadurecimento-- embora Os sertões fosse o seu primeiro livro -- revelando um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte : o crítico Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor”poderiam resultar em desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia”. O crítico e ensaísta Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem : Euclides implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição, expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás, a uma delas)
Para José Guilherme Merquior, “Os sertões. é o clássico do ensaio de ciências humanas no Brasil”, numa época, enfatiza, em que os estudos sociológicos ainda conservavam muitas afinidades com a formação humanística. É exemplo notável de uma “intelectualização da literatura”, num livro meio científico meio literário que abordou “alguns temas atualissimos da pesquisa antropológica”: um deles, da mística do advento do Reino de Deus por intermédio do messias Conselheiro __ e aqui surge o tema ( dos mais polêmicos) do messianismo e do sebastianismo. Ao reconhecer o entrosamento dos aspectos irracionais da personalidade do ‘profeta de Canudos’ com as aspirações e carências de uma comunidade rústica, sufocada por flagelos naturais e indiferença das camadas dominantes, Euclides “intuiu brilhantemente a natureza psicossocial da noção de loucura, dessa ‘zona mental onde se acotovelam gênios e degenerados’; sobre Antônio Conselheiro, cujo delírio místico traduzia o desespero de uma sociedade, Euclides afirmou que ‘foi para a História como poderia ter ido para o hospício’. Vale dizer, “o positivista Euclides suspeitava da existência de uma ‘sociologia do psiquismo’, do mesmo modo que o darwinista social constatara a força titânica das ‘raças inferiores’. Fulgurante pela transbordante energia poética de seu estilo narrativo, Os sertões sobrevive ad eternum também por seus inovadores vislumbres sociológicos __ inéditos e ‘revolucionários’ para a época, absolutamente válidos e instigantes hoje”, sublinhou Merquior.

Factualidade, perenidade, atualidade.
Os sertões recebem, de Gilberto Freyre, uma interpretação que sublinham seu caráter ‘fundador e canônico’. O autor de Casa grande & senzala aponta “a eternidade e incolumidade” da obra diante de um movimento cada vez mais radical de mudança de eixo para interpretação dos fenômenos sociais: o conceito de raça, pelos idos de 1940, como explicativo para o social, estava sendo derrubado, e as ciências sociais proclamavam sua autonomia frente às ciências da natureza. “Como então Os sertões, que tinha em grande medida como quadro conceitual as ciências da natureza, mantinha-se [e mantém-se] atual, glorificado em edições e mais edições, traduções ? Como resistiu ao movimento de releitura da raça como fator de inferioridade, explicativo da sua gênese ?”, indaga Freyre, para ele mesmo responder : “porque Euclides da Cunha, ainda que resvale no pessimismo dos descrentes da capacidade dos povos de meio-sangue para se afirmarem em sociedades equilibradas e organizações sólidas, uma descrença lastreada no fatalismo da raça, no determinismo biológico,ao tentar compreender a psicologia do sertanejo, fez um ensaio revelador sobre a formação do homem brasileiro. Desmistificou o pensamento vigente entre as elites do período, de que somente os brancos de origem européia eram legítimos representantes da nação. Mostrou que não existe no país raça branca pura, mas uma infinidade de combinações multirraciais. Previu um destino trágico para o Brasil, se o país continuasse a não levar em conta as diversas raças que o formaram. Mostrou que o Brasil tinha contradições e diferenças étnicas e culturais extremas. Concluiu que havia uma necessidade imperiosa de se inventar uma raça. Caso contrário, o Brasil seria candidato a desaparecer”.
Apesar de imerso num contexto intelectual e sociológico onde predominava o determinismo biológico, Euclides teve, no entender de Freyre, a lucidez de perceber que “o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, ele percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas, principalmente o da raça, lhe tivessem perturbado a análise e interpretação de alguns dos fatos de formação do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos". Ao tecer o perfil de Euclides da Cunha como escritor além de seu tempo, intuindo o primado do fator cultural no estudo das sociedades num ambiente intelectual, sociológico e antropológico em que predominava a noção de raça como elemento explicativo do social, Gilberto Freyre propõe nova atualidade para o autor de Os sertões.
A atualidade e modernidade da obra __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil. “Euclides da Cunha é o intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil por dentro”, vaticina o crítico e ensaísta Luiz Costa Lima. ”Os sertões deixou um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido”, completa .Costa Lima sustenta ser “Os sertões obra de estranhamento e paradoxos” , e especula : “pode uma obra ser ao mesmo tempo ficcional e não-ficcional? pode , na medida em que recicla e faz repensar o papel desempenhado pelo discurso científico e pelo discurso literário”. Lima argumenta que Euclides constrói na verdade ”uma dupla inscrição, uma estrutura narrativa que supõe o ajuste de um centro tematizado com bordas e molduras”. Nisso residiria exatamente o ‘estranhamento’ , porquanto “o texto se desgarra do centro férreo __ ‘cientificista’__ e se mostra sob a forma de ‘ilhas’, nas bordas em que uma espécie de representatividade teatral vence a intencionalidade autoral”. O que , no entender de Lima, entre muitos outros aspectos torna a obra absolutamente genial.Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um momento histórico e complexo processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’ e seja fadado à posteridade.
No lastro da posteridade porque , simbiose entre jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.
Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil”.
Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes da historiografia literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza e Silva , José do Patrocínio.
Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”, denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo __ algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador da Pátria’).
Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.

Mauro Rosso
dez’ 2007

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