quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

contemporâneo da posteridade-I


não se pode deixar o mês de dezembro se encerrar, e com ele o ano, sem o registro de 105 anos de publicação -- melhor dizendo, de vida (eterna) -- de uma das obras fundamentais da literatura brasileira,verdadeira opera-master,e o primeiro bestseller da história literária nacional : Os sertões, de Euclides da Cunha.


Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.
Os sertões estão fadados à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha, completa 105 anos celebrada por muitos, muitissimos motivos __ em especial por sua espantosa atualidade
Já se falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número 1”. O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países__ em muitos deles foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento? . Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.
O que fez ,e faz, Os sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época __ de outro está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da ‘geração 1870’; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo escapavam do comum, do conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas : literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática, engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.

A emoção e o espanto provocados pela obra de Euclides emite seus ecos até hoje. Quase todos os críticos se entusiasmaram, mas por força de seu ofício ficaram se perguntando: por quê? “É uma obra sem carteira de identidade. A natureza de seu ser, enquanto obra literária, permanece indecifrada. É impressionante verificar como sua realidade ontológica persiste incapturável pela crítica literária”, admitiu o escritor Franklin de Oliveira, que fez a si mesmo a pergunta até hoje ‘clássica’ : afinal, o que é Os sertões? É ficção, vaticinaram entre outros Tristão de Athayde e Afrânio Coutinho, que escreveu: “Trata-se de romance-poema-epopéia. Uma epopéia épica,narrativa heróica, da família de Guerra e paz, e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada.” O professor Leopoldo M. Bernucci , da Universidade do Colorado em Boulder,EUA, acredita que em toda a história da literatura brasileira nenhum autor conseguiu estabelecer, até agora, uma relação tão visceral com seus leitores como Euclides. “O sentimento do leitor é de assombro e perplexidade. É detestado e adorado. Tem acertos e deslizes, mas não deixa ninguém indiferente.”. Independentemente da sucesso de público e de crítica, sua perpetuação, sustenta a antropóloga, pesquisadora e ensaísta Regina Abreu, está relacionada a demandas sociais. Ao ser transformada em monumento, símbolo nacional ou fenômeno cultural, uma grande obra literária extrapola suas características iniciais, passando a desempenhar funções sociais que ultrapassam seu valor essencialmente literário. “O coroamento de Os sertões teve o mesmo efeito de um tombamento__ como ocorre com um bem arquitetônico”, ela explica; “ é como “semióforos”, dotados de um valor simbólico que ultrapassa o valor de uso; considerados preciosidades, estão investidos de valor sagrado. Tornam-se um culto”.
Na consagração de Os sertões, menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação ? por inovar , por renovar, por revolucionar.... por tornar-se enfim um clássico, em meio a elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país__ não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de Canudos’.Euclides da Cunha nasceu e se criou na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX __ uma sociedade monárquica dominada por grandes proprietários de terra e de escravos, em que vigorava o espírito da “sociedade de corte”.Na seara literária, era época da incipiência do naturalismo/realismo__ de um naturalismo com cunho cientificista __ ascendente sobre o romantismo(então representado sobretudo por Machado de Assis e José de Alencar); tempo ainda da proliferação da temática do sertão e do interior, de profusão de ‘escritores sertanejos’__ e nesse contexto, por força desse vetor, Os sertões encontrou ‘campo fértil’ de aceitação e, face à sua qualidade excepcional, de celebração definitiva.
Por outro viés, o momento de consagração de Os sertões, no início do século XX, pode ser considerado o coroamento de uma invenção que já vinha se processando há anos, ‘a invenção do sertão’. O sucesso da obra de Euclides veio afirmar __ e por ela foi ativada__ a positivação da temática sertaneja , do interior, entranhada na cultura literária brasileira. Os sertões, de resto, se inserem numa tradição literária privilegiante do rural e incentivou,insuflou e consolidou uma vertente que iria gerar o ciclo do romance regionalista da década de 1930.Mas Euclides também se distinguiu dos demais escritores da ‘voga sertaneja’ por vir apoiado em discurso científico, novidade na época, que deu ao livro ‘autoridade’ superior (ao mesmo tempo ‘legitimadora’ das demais obras sertanejas) e forneceu condições para que idéias e conceitos emitidos apenas como impressão ou opinião ganhassem estatuto de fatos ‘cientificamente’. O sertão tornou-se via privilegiada para uma leitura do Brasil tanto do ponto de vista literário e artístico quanto da tradição de estudos de etmografia e folclore : na esteira dessa via vieram Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa , até mesmo Glauber Rocha no cinema e Mestre Vitalino na arte popular artesanal.

(continua)

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