terça-feira, 14 de julho de 2015
Machado de Assis, França, franceses
pelo 14 Julho
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Notória
e intensa,sabemos, era a influência praticamente absoluta da França e da
cultura francesa, da moda e costumes, do idioma francês na sociedade brasileira
do século XIX e até mesmo nas primeiras
décadas do século XX : a inteiração com
a França , a rigor, proporcionou à cultura brasileira um decisivo processo de
inflexão contraposta ao círculo histórico colonial a que se atrelava, vindo
a apontar para o cenário de novos
horizontes civilizatórios.
Relata Magalhães Junior (magalhães junior, 1955): no tempo de
Machado circulavam na cidade do Rio de Janeiro vários jornais em francês –
alguns de existência efêmera , mas o suficiente para serem bem acolhidos e
alguns deixarem sua marca .O primeiro deles foi Le Messager, de 1831
a 1834 ; em 1839, ano de nascimento de Machado , havia L'Êcho Français,e a ele sucederam-se na década de 1850 o Courrier du Brésil, L'Êcho
de I'Atlantique, L'Êcho du Brésil e
de l'Amérique du Sud, Figaro-Chroniquer, em seguida Le NouveIliste
de Rio de Janeiro , Le Brésil e Gazette du Brésil, no período 1860-70, e depois Le Gil Blas , em 1877-1878. O próprio Diário do Rio de Janeiro, publicava vez
por outra uma edição em inglês, francês
e português. Em meados da década de 1860 surge a revista de caricatura Ba -ta - clan, cheia de charges sobre as grandes figuras do teatro
e as personalidades ilustres da
política, que vinha com os textos redigidos
em francês, inclusive os versinhos satíricos que serviam de legenda às
caricaturas.De todas as publicações em língua francesa de então foi a de maior
duração. - circulou de 1867 a
1871 – e mais espirituosa.
Paralelamente, duas companhias francesas apresentavam regularmente
espetáculos anunciados totalmente em francês – o período era de domínio do Alcazar Lyrique ,do empresário de origem
francesa Arnaud. Os hotéis mais concorridos – todos oferecendo “serviços à
francesa”[sic] --eram o Ravot e o des
Étrangers (e seu "restaurant à la mode de Paris"), o des Quatre
Nations, o Hotel Capelle, o Louxembourg,
o des Freres Provenceaux. O comércio elegante era quase todo francês, a
começar pelas grandes lojas, como a Raunier e a Notre Dame de Paris; Mme.
Labrière , camiseira de Sua. Majestade,
concorria com Mme. Bloc., que
vendia camisas vindas da França, com
Mme. Antoinette Verlé e com Mme. Elisa
Hagué , ambas modistas de Paris .A "Casa do Naturalista” vendia os fumos e cigarros Au Caporal
Français, os doces e as frutas cristalizadas do sr. Guillard. de Clermont
–Ferrand, os salames de Arles, as frutas em caldas de Teyssoneau e os "nougat de Montelimer aux pistaches
et à la vanille". "Aux Caves du Médoc", por sua vez, anunciava
"vins, liquers. conserves", Victor Maret propagandeava as últimas
novidades na"Chapelerie Française" ; Leon Boisnard era um dos muitos
joalheiros e relojoeiros , Mme. Auguste Gatto vendia chapéus de senhoras,
rendas de Chantilly , "guipures" e.
vestidos de "barege" ,
J. Rouqué apregoava-se "dourador da casa imperial" ,.
Augusto Baguet vendia pianos e
partituras, Eugene Guenée, na
"Relojoaria Fluminense". anunciava relógios franceses e suíços , e
Auguste Bourget dizia ter em sua loja tudo em matéria de "insectes,
papillons, coquilles et oiseaux" ; o dentista da moda era Napoléon Certain
e a florista da alta roda era Mme. Dehoul,.
proprietária da "A Imperial". Os principais editores eram os irmãos
Garnier, que iriam durante longo tempo iriam publicar com exclusividade os
livros de Machado; os livreiros eram franceses, como Fouchont et Dupont, e
Lavogade. A literatura francesa impregnava ,em maior ou menor grau, a sociedade
da Corte
A vida política também gravitava
em torno da França : além das constantes e
irrefreáveis citações e alusões a
personalidades, obras, textos e documentos franceses, deputados e senadores
nunca deixavam de ,pelo menos ter em suas bancadas -- como uma espécie de Bíblia contemporânea --
os exemplares recém-chegados da Revue des
Deux Mondes. O casamento da princesa imperial, D. Isabel de
Alcântara, herdeira do trono, com um príncipe francês - Conde d'Eu – certamente
exerceu forte influência para que o Rio de Janeiro imperial se afrancesasse
cada vez mais..
No
Rio de Janeiro do século XIX, lia-se todo tipo de publicação francesa, comia-se
à francesa, vestia- se à francesa, dançava-se à francesa, comportava-se à
francesa, ia- se a teatros em francês , modelava-se a vida da cidade pela vida
de Paris.
Como todos os literatos e intelectuais, Machado de Assis
evidentemente não ficou ‘imune’ : talvez tenha sido o escritor brasileiro de
seu tempo mais influenciado e mais ‘interativado’ com a cultura francesa criando
vias de mão dupla, traduzindo e sendo traduzido, e por outro lado fazendo de
autores franceses algumas de suas leituras preferenciais além de neles se
inspirar e referenciar em muitos de seus textos.
Machado , que não tinha ascendentes
franceses nem viajara pela Europa ou
frequentara escolas francesas, foi um autêntico autodidata : adquirira,
ampliara e aperfeiçoara seus conhecimentos da língua francesa por meio de muita
leitura, pelo convívio com Charles de
Ribeyrolles -- exilado francês de forte influência na formação intelectual de
Machado, no aperfeiçoamento de seus conhecimentos do idioma, no aconselhamento em suas leituras, no
empréstimo de livros - e com artistas de
teatro importados da França.
Certo é que essa integração de Machado tem muito a ver com a
influência cultural e social do francês na sociedade brasileira do século XIX ,
e sobretudo com o fato de ter Machado pleno conhecimento do idioma, tanto que
traduziu os maiores autores gauleses.
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As relações, ou interação, de Machado com a França denotam-se de
imediato e por princípio em suas leituras, haja vista a incidência de obras e
autores gauleses -- a par de uma infinidade de livros e autores outros
traduzidos em versão francesa -- em sua biblioteca, conforme o levantamento
realizado pelo pesquisador Jean-Michel Massa (massa,
2002).
Registra Massa
que, sabendo da existência da biblioteca particular do escritor, empenhou-se no
levantamento e inventário do acervo , malgrado os problemas enfrentados – o
primeiro deles, simplesmente , “o que restava em 1960” : bastante incompleta, amputada que fora por duas vezes
, a primeira logo no dia seguinte à morte de Machado, quando cerca de 200 volumes foram doados , sem deixar ‘rastros’
ou vestígios; a segunda, por volta da década de 1940, quando os livros em brochura ,guardados numa garagem, sofreram a ação da
umidade,poeira,fungos, falta de cuidados, e
deterioraram-se (Massa anota ter
sido informado por descendentes de
Carolina Xavier que essa parte do acervo
abrigava muitas obras francesas ,entre elas de
Lamartine, Victor Hugo, Alexandre Dumas, George Sand, Prosper Mérimée,
Gustave Flaubert, e as obras completas de Pierre Loti ; além de obras de Tolstoi e os seis volumes das obras
completas de José de Alencar). Da biblioteca como um todo, restaram somente as
obras encadernadas, a maioria de língua
alemã e inglesa -- mas também uma
quantidade bastante razoável de livros
em francês , alguns já encadernados pelo
editor ou pelo livreiro outros devido ao “cuidado do próprio Machado , a
demonstrar seu interesse pelos textos”, observa Massa.
Em seu trabalho,
Massa adotou como critério de catalogação e classificação agrupar os livros segundo domínios , quais sejam francês, brasileiro, grego, latino,bíblico e
religioso, oriental, italiano, espanhol,inglês e alemão : dos 575 títulos , 413 são em
francês,103 em inglês, 37 em alemão,17
em italiano,5 em espanhol, e 9 traduções em português.
Machado tinha
ainda em sua biblioteca, informa Massa, em versões francesas, diversas obras
dos domínios (conforme a catalogação criada pelo pesquisador) grego – de
Aristófones, Aristóteles,Ésquilo,Heródoto, Homero, Luciano de Samosate,Platão,
Plutarco, Sófocles, Tucídides ; latino – de Catulo, Horácio, Lucrécio,
Petrônio, Tácito, Tito Livio; italiano – de Maquiavel, Tasso ;espanhol –
Caldéron ;inglês – Buckle,Macaulay,Shakespeare,Lamb,Swift,Darwin, Spencer ;
e alemão – Goethe,Heine, Schiller,
Hartmann, Hegel, Schopenhauer ;além de outras,em edição francesa, nos domínios bíblico e religioso, e oriental..
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A par das obras e autores mantidos em sua biblioteca e das leituras
preferenciais que sabemos cultivou ao longo da vida , a integração de Machado
com a cultura francesa expõe-se de forma clara nas incontáveis,
reiteradas,repetidas,marcantes citações
e referências que dedicou a autores e textos gauleses em seus escritos,
mormente nas crônicas , em contos e nos romances.
Antes de
tudo, as citações feitas por Machado revelam suas leituras francesas –
notoriamente os clássicos como Racine, Corneille, Beaumarchais, Dumas, Dumas
Filho, Feuillet , Voltaire, Stendhal e Zola ; outras, advindas de textos filosóficos como os de Rousseau,
Pascal e Montaigne. além da
presença das fábulas de La Fontaine , de canções
populares ou de operetas, e de
provérbios, máximas e frases de
Madamede Sévigné, La
Rochefoucault , e La Bruyère.
Mas entre todos, dois autores se detacam nas alusões machadianas nas crônicas e em
contos : o Molière de
comédias teatrais e o Victor
Hugo.de romances e poesia (inclusive,este, de influência marcante na poética de
Machado, mormente em Ocidentais , também
em Crisálidas ) ,a
par de referências na crítica teatral e na
crítica literária escritas por
Machado.
Raymundo Magalhães Junior sustenta ter sido mesmo ”um de seus prazeres
especiais”, mercê sobretudo de sólidos conhecimentos da literatura
estrangeira,inclusive citando no original “o que cabia e podia nos limites da crônica
ou do conto” (magalhães junior,
1955), neles apondo versos de Corneille,
de Racine, de Boileau, de Musset,de Lamartine, de Alexandre Dumas Filho,de
Baudelaire, pensamentos de Pascal , reverências a Balzac e Montaigne, e
sobremaneira torrenciais citações a Victor Hugo e a Molière, incorrentes na
esmagadora maioria das citações machadianas . Em crônicas e contos, o
dramaturgo tem citações extraídas ,p. ex. , de “Tartuffe” , de “Le Misanthrope”
,de “Les Femmes Savantes” , de “L’ Êtourdi” e “Sganarelle” – inclusive ‘apropriando-se’ do personagem Lélio, personagem da peça “L’étourdi”, de
Molière, como assinatura nas
crônicas da série “Balas de Estalo”(in Gazeta de Notícias, 1883-86) e do conto “Antes a rocha tarpeia”,no Almanaque
da Gazeta de Notícias 1887 – de “Le Mariage Forcé”, de “Le Mèdecin
Malgré Lui”, de “Le Médecin Volant”. Também em “Balas de Estado” o poeta
Charles Rémy tem versos apostos em crônicas, e La Fontaine – de quem
Machado chegou a traduzir a fábula “Les Animaux Malades de la Peste ” -- aparece aqui e ali
com versos de “Épitaphe d’un Paresseux” .E o vasto elenco é fornido ainda
com Chateaubriand, Emile Zola,
Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Émile Augier, La Rochefoulcauld ,
Montesquieu, Vigny, Regnard , até Cyrano de Bergerac e Luis Napoleão.
E não se poder deixar de
lembrar o quanto os franceses Denis Diderot e Xavier de Maistre,
respectivamente com suas obras Jacques o fatalista e Viagem à roda de
meu quarto, influenciaram decidida e intensamente – melhor dizer :
essencial e estruturalmente – Machado na utilização da sátira menipéia.(assim
como Laurence Sterne e sua obra A vida e as opiniões de Tristam Shandy, um
cavalheiro , e Almeida Garret, com Viagens
na minha terra ).
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A interação machadiana com a
França manifesta-se ainda – e especialmente na importante atividade de tradutor (que,iniciada em 1856 , segundo Mario de Alencar “nunca
deveria ter sido interrompida por Machado”).
A
atividade tradutória machadiana e as traduções realizadas por ele, revelam
muito do processo de sua formação literária, e essencialmente muito das próprias
construção e constituição de sua obra de
criação. Machado conhecia,em maior ou menor grau, o francês,o inglês, o
espanhol, o alemão, o italiano –
além,claro, do português.
Jean-Michel Massa (massa, 2008)
relaciona 48 textos traduzidos
por Machado entre 1856 e 1894 (estreando com o poema “On the receipt of my
mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William
Cowper”), e logo depois com dois textos
originalmente franceses : uma opereta , “A
ópera das janelas”(provavelmente, nota Massa, extraída de Opéra aux
fenêtres) e “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine,ambas
em 1857. Seguiram-se 16 peças de teatro
-- a primeira, também de franceses :“La chasse au lion”, de Vattier et
De Najac -- 24 poemas, 3 ensaios, 2
romances, 1 conto – no caso, “Bagatela”de clara referência francesa -- 1
fábula—do francês La Fontaine
-- e até 1 canção — sendo 39 textos
oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do
espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Alexandre Dumas Filho,
Chateaubriand, Racine, Alfred de Musset,
Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Émile de Girardin; e Shakespeare, Charles Dickens, Dante
Alighieri, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (estes, a partir de versões francesas) .Massa enfatiza que
em dois anos, Machado na ação tradutória
abordou os principais gêneros literários: o teatro,o ensaio literário e
histórico, a poesia, o conto.
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Acrescente-se a todo esse
profícuo conjunto textos escritos pelo próprio Machado no
idioma francês, publicados nos veículos brasileiros em que colaborava
regularmente .
Do mesmo modo,
na fértil seara
da produção literária de Machado também deu -se
o ‘inverso’, Machado publicado no
idioma que tanto traduziu.
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O Brasil integra-se
historica e culturalmente à
França pelas artes plásticas, pela
música, pelo teatro, pela dança ,por uma identidade que na verdade
irradia-se por diversas searas.
Na literatura, especificamente,
ninguém melhor e mais essencialmente representativo que Machado de Assis para personificar,
representar e sedimentar a identificação
e integração com a pátria de Molière, Racine, Victor Hugo, Dumas Filho, Musset, Chénier, Lamartine e
tantos gauleses que o inspiraram e fomentaram.
M.R.
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