sábado, 6 de dezembro de 2014
Humberto de Campos -- 80 anos depois
neste 05 dezembro, em 1934, morria Humberto de Campos, um dos mais ativos e profícuos escritores de seu tempo -- inclusive dono de uma verve satírica demolidora ,até mesmo contra seus pares e amigos literatos, e em especial de uma 'veia' fescenina (que na verdade era do Conselheiro XX, presente estará em meu livro com os fesceninos)
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As cruzes
As senhores grazinavam, como
periquitos em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se
curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas
vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria.
Segurando em uma das mãos a taça
de porcelana e na outra, fechadinha como um botão de rosa, uma torradinha cor
de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente, agitando-se na cadeira,
quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de neve e rosa, pela
janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-lhe para o
ombro, com o risco de perder-se.
— Cuidado com a cruz, madame! —
avisou, atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que
observava, sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário e os
arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou
a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carnem rosada, queixou-se, risonha:
— Também, que idéia esta, de
inventar cruzes para o colo da gente!
— Vossa Excelência não sabe,
então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas
de conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as
palavras:
— Na Idade Média, quando eram
deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de aldeia para
aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam nos países
barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas
direções eram assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na
montanha, um destes símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara
o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...
— Mas... - interrompeu,
impaciente, Mme. Souza Batista.
— Espere... - implorou o
conselheiro.
E continuou:
— Mais tarde, com o advento das
modas femininas, e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as
conquistas do homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma
significação.
— A cruz no colo das mulheres
quer dizer, então, alguma coisa? — interrompeu, franzindo a testa, Mme.
Werther.
— Evidentemente, minha senhora! —
tornou o conselheiro.
E explicou:
— Elas estão dizendo, como nas
montanhas antigas, que... o caminho é por ali!
Quando o conselheiro terminou a
sua narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um
susto. Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o
decote, e fugido para trás...
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Ferrabrás
O coronel Otaviano de Meireles,
comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era
conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua
intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas
do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia,
sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse,
era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.
Foi por esse tempo, e quando mais
se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que
passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes,
que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um
dos mais famosos namoradores de Niterói.
Proprietário do prédio em que o
coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar
amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr.
Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso
militar.
Chegado o dia, lá estava, na
praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um
sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa
ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já
o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa,
das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.
— O Dr. Otacílio Fernandes —
apresentou o coronel.
E ao recém-chegado:
— Minha esposa...
Minutos depois, sentados à mesa
redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz,
entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou.
Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação
das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.
— Diabo! — exclamou o bravo
militar. Tenho de ir, não há remédio!
E virando-se para o capitalista,
enquanto desamarrava o guardanapo:
— Esteja à vontade, doutor. É
questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!
E para a esposa:
— Orminda, faze as honras da
casa; eu venho já!
Mal o coronel tomou o bonde, duas
taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele
encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em
casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de
excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido.
Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:
— Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!
Pálido, trêmulo, o advogado
lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.
— Sim, senhor! — tornou o
militar.
E abrandando a voz:
— Você não tem medo de uma
congestão?
Resposta difícil
Rosto em fogo, cabelos em
desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um
lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma
carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada
no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida,
a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos
cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.
-- E dizer-se que eu confiava em
ti, tua honra, no teu amor, e que estava em S. Paulo tranqüilo, sereno, na certeza de que
procedias, aqui, com seriedade. com dignidade, com a correção que me havias
jurado, de joelhos, diante de Deus!... - geme, quase chorando, o pobre esposo
desesperado.
Madame procura, como um náufrago
na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido
atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a
cabeça entre as mãos:
-- Que vergonha, meu Deus! que
vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o
rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou,
impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira
grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a
extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente,
pára, e reclama, cerrando os punhos:
-- Confessa-me. afinal: quando
foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha
ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um
caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de
lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido,
indaga, apenas, pronta para uma explicação:
-- Qual?
Obediência
Mal saída do colégio, para onde
entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto,
enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente
alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo.
Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que
lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi
a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
-- Olha, minha filha; esta casa é
tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive
isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os
vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara.
coroada por uns lindos cabelos castanhos:
-- Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham
passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões,
vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia,
resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador.
Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis
penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a
sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de jóias, carregando,
enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado
capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de
regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às
escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida,
precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela
menina:
-- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde
estás, minha filha?
No último quarto da casa,
esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as
vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.
-- Minha filha da minh'alma! -
gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?
-- Os ladrões!... - explicou a
moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
-- Levaram tudo: as roupas, as jóias,
a louça, tudo, enfim. Depois...
-- Depois?... - rugiu o velho,
com os olhos esbugalhados.
-- Desgraçaram-me!... - concluiu
a moça, prorrompendo em soluços.
-- Desgraçaram-te?... - gritou o
velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera
atingida no coração.
E após um instante de silencio
desesperado:
-- E como foi? Amarraram-te?
-- Não, senhor.
-- Subjugaram-te?
-- Não, senhor.
-- Taparam-te a boca?
-- Não, senhor.
-- E por que não gritaste? -
berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele,
num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
-- Papai não disse que eu não
incomodasse os vizinhos?
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