sexta-feira, 7 de novembro de 2014

aos que vão ao ENEM

ainda mais neste 1750. ano de nascimento de Machado
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A crônica em Machado de Assis

Inovador na ficção, como contista e romancista – está na história da literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem por ele executada no final da década de 1870 -- Machado de Assis foi soberbo cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário, a servir de modelo, molde e paradigma  a tudo e todos que o sucederam, inclusive os de hoje. .
Ao longo de 41 anos, Machado criou crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e assinaturas (ou disfarces), desde 1859, em O Parahyba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: série “Comentários da Semana”; 1864-67: série “Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), Imprensa Acadêmica, de São Paulo (1864 ; 1868 :série “Correspondência da Imprensa Acadêmica”) A Semana Ilustrada (1865-75: séries “Crônicas do Dr. Semana”, “Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “Badaladas), Ilustração Brasileira (1876-78: séries “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30 dias”), O Cruzeiro (1878: série “Notas Semanais), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: séries “Balas de Estalo”, “A + B”, “Gazeta de Holanda”— constituídas em versos,os ‘versiprosa’ (termo cunhado por ele e que antecipa em muitos anos a mesma expressão usada por Carlos Drummond de Andrade --“Bons Dias!”  e “A Semana).
Nessas  quatro décadas -- com uma produção de 738 artigos --  o País  teve oportunidade de  conhecer um magnífico repositório da arte machadiana de criação de muitas  das melhores crônicas da literatura brasileira – um número nada desprezível delas consideradas verdadeiras obras-primas..
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Machado fez da crônica  mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum ,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
A crônica de Machado de Assis, com suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, ostenta também a presença incisiva (como ocorre em sua obra ficcional) dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em especial a “arte das transições”--  levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para o leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir, utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa na ficção, executadas também na crônica, sobretudo pelo absoluto  domínio da relação cronista-leitor, e a preponderância do conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’ da ficção aparecendo  também na crônica :a rigor,   nos  comentários e ilações desse narrador é que a crônica  passa a se fazer e  sentir.

Na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador --  mutável na utilização de formas,estilos e modelos --  mas absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, Machado sempre preocupou-se  com configurações para sua obra : (assim como o conto) a crônica foi um notável e eficaz terreno de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque .As crônicas machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais  foram elaboradas : revelam cadeias de pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências e situações de romances e contos.
Nesse particular, é possível a construção de uma equação especulativa/ interpretativa sobre a correspondência do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra -- em especial o momento da inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos  de Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima ‘reformulação’ de enfoque, forma e estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional –-- transpondo o romantismo dos primeiros três romances (Ressurreição, A mão e a luva, Helena) e a ‘ideologia’ presente nos contos iniciais (abrigados nas coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador da inovação/ ‘revolução’ sintetizada no ‘shandiano’ Memórias póstumas de Brás Cubas) para um  aprofundamento e sedimentação do realismo, mas ‘subvertendo’ e renovando esse realismo (em Papéis avulsos , consolidado em Quincas Borba, em Dom Casmurro, depois em Esaú e Jacó e no definitivo Memorial de Aires ) . Esse  processo de reformulação, dizíamos , deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a mesma ‘latitude’ literária , na mesma época, também na  produção das crônicas publicadas na imprensa.


Ao se examinar a produção croniquesca de Machado encontraremos  crônicas que .impressionam não apenas pela matéria registrada e narrada mas sim pela forma de contá-la – quer interferindo direta e intimamente na narração, fazendo do narrador  o  comentarista, quer pelo distanciamento, numa forma de narrativa isenta mas intrinsecamente crítica. Em determinadas crônicas há por certo um Machado trivial e contido, em outros um autor meramente humorístico, com textos e narrativas que não passam do simples divertimento; alguns, aparentemente simplórios e despojados, mas carregados de significados; outros em que, sob a capa de uma escrita sóbria, discreta e ‘bem-comportada’ reveste contradições e ambigüidades comportamentais, , mazelas e injustiças sociais,hipocrisias morais e políticas. 

Importante observar ainda quanto os períodos, os contextos históricos, os veículos e seus respectivos  espaços dados à crônica, as assinaturas, influíram tanto no enfoque temático, como  no timbre. Nenhuma série é essencial e totalmente idêntica a outra, ainda que guardem afinidades e similaridades, mantidas  as homogeneidade e unidade  inerentes a  cada uma .Da mesma forma se  constata que cada época, ou série, trata ou prioriza um tema que sobressai por sua relevância,sua particularidade, sobretudo por sua correspondência-consonância com o momento histórico de sua feitura : às distintas e seqüentes séries podem-se traçar a rigor, enredos e sub-enredos que se desdobram e interligam-se em ciclos -- cada script com seu pano de fundo temporal , sob o fio condutor   da própria história brasileira da segunda metade do século XIX.
Relevante e absolutamente indispensável realçar, nesse sentido, o quanto Machado, ao contrário do que equivocadamente interpretado e difundido, tratou de política em seus escritos – também nos contos e romances, sobretudo nas crônicas -- a desmistificar a pecha de “alheio a questões de seu tempo”, “alienado”, etc. Foi ele um lúcido ‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e das instituições do País : dedicou-se intensamente, para quem não sabe, a registrar, comentar, refletir e especialmente criticar assuntos da esfera política.,  exposto em nada menos do que 385 crônicas ,vale dizer cerca de 52% de sua produção total de 738 artigos  – o mesmo se dando com relação à economia, referenciada e reportada em 77 crônicas..

Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte  de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica,  desnundando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito  testemunho incomparável  sobre a vida  brasileira  do século XIX.  


mr

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