sexta-feira, 27 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - IV

Os primeiros de Machado (contin.)

o conto debutante:
Três tesouros perdidos

o primeiro conto de Machado, publicado originalmente em A Marmota ,5 janeiro 1858,oferece importantes elementos de interpretação : ao lhe conferir um evidente teor anedótico , Machado formaliza um desvio de viés ‘ideológico’ no figurino romanesco: de acordo com o qual , nas obras iniciais , pelo menos até 1871/73 , as personagens machadianas são do
nzelas conformadas com os casamentos ,em geral ao sabor de conveniências ou por vontade dos pais, por mais contrárias que fossem a seus sentimentos e inclinações, ou por mais inesperadas e surpreendentes que se dessem as decisões.
Machado prenuncia, em seu debut ficcional, um elemento temático que habitaria muito de seus contos e romances -- a infidelidade conjugal. só que, ao contrário da absoluta maioria dos contos em que aparece, em que é apenas desejada,idealizada,aspirada pela mulher, nunca concretizada , aqui a faz explícita, concreta, plenamente realizada e 'visível'. notável ousadia machadiana ! ainda desconhecido,tratando de tema tão 'delicado', o expõe corajosamente de modo claro, mas resguarda-se assinando o conto por criptônimo [ ***] (ele, mestre também no uso de pseudônimos) e construindo a narrativa ( em terceira pessoa), que não dá nome aos personagens.primórdios,claro, dos exercícios de dissimulação e subterfúgio machadianos.
..............................
Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.
Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...
— Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...
— Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à infâmia?
— Senhor!...
E o sr. X... deu um passo para ele.
— Alto lá!
O sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:
— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!
— Mas, senhor, disse o sr. X..., a quem a eloqüência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...
— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?
— A corte à sua mulher! não compreendo!
— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira .
— Creio que se engana...
— Enganar-me! É boa! ... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...
— Sua casa!
— No Andaraí ... por uma porta secreta... Vamos! ou...
— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...
— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!
Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.
Surgiu, porém, uma objeção.
— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...
— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.
E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:
— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?
— Para Minas.
— Oh! a pátria do Tiradentes ! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!
Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.
O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga , deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.
Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:
“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”
Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.
— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.
— Teu senhor?
— Partiu para Minas.
O sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:
— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras !...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.
                                         
                                                                                        ***

Nenhum comentário: