quarta-feira, 26 de março de 2014
Machado de Assis, a mulher, o amor
ainda em pleno "mês da Mulher" -- não apenas março, mas que devem ser todos.
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Nenhum escritor de seu tempo —
Joaquim Manuel de Macedo (de A Moreninha
e em inúmeros contos), José de Alencar( notadamente na trilogia
urbana Senhora, Diva e Lucíola, além das
novelas Cinco minutos e A viuvinha, e A
pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação),
nem Taunay (em Inocência), Bernardo
Guimarães (e sua Escrava Isaura),
Domingos Olímpio ( com Luzia Homem),
nem Lima Barreto (de suas Clara e
Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo
Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das
instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”) — ‘edificou’ tanto a
mulher como personagem capital e
elemento básico de sua
ficção como Machado de Assis.
Tinha a mulher
não apenas como principal, capital protagonista de seus romances e contos,
muito mais que isso, verdadeiro leitmotiv
--sempre chamando a atenção, nas linhas
e entrelinhas de seus textos, para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-social, e mesmo sexual, da mulher :
argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar completamente
confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade.
Dava-a
também como sua leitora predileta:
Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era
segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas
páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar em publicações cujo público predominante era
feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de 1864 a 1876, e de 1879 a 1885, e em 1892 e
1894 em A Estação.
Desde o primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm para os tolos, passando pelos primeiros
romances na década de 1870, , na imensa maioria dos contos , na
excepcional novela Casa velha(1885), chegando
aos romances dos anos 1880 e 1900, sua obra, de modo geral, encena vários tipos
feminino, mulheres
ficcionais, orgulhosas ou tímidas,
calculistas ou levianas, singelas ou complexas, “com seus contornos roliços,
seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, criaturas feitas de capricho e de carne,
sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”-- com histórias
povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que
as mulheres se defrontavam (e defrontam-se, quase sempre) na vida: assim é
com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia,
Virgília e Marcela de Brás Cubas,
Sofia de Quincas Borba, Capitolina de
Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das
protagonistas de inúmeros contos, como estes aqui expostos, que abrigam vários tipos femininos e
situações vivenciadas pelas mulheres –
fossem no século XIX sejam hoje (por certo, sob escalas distintas) -- podendo
mesmo serem catalogados como ‘estudos
sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda
sensibilidade de Machado no trato de
questões que envolvem amor, ciúme, casamento, moral, ética, preconceito social,
autoritarismo, patriarcado.
O amor
é o grande tema, central e capital, na contística de Machado -- essencialmente, os amores e frustrações femininos como temas
constantes -- o amor visto, tido e exposto como a única
comunicação possível entre pessoas,quaisquer que sejam suas natureza,
caracteres, etnia,classe social, e o casamento– e seu derivativo mordaz, o
ciúme – são os elementos basilares de
Machado, presentes sem exceção em todos os
contos, vez por outra inserindo assuntos difíceis de serem tratados à
época ,mas sempre em defesa da base moral do amor -- como relações afetivas e
conjugais entre pessoas de classes sociais diferentes, incompatibilidades e
embustes sentimentais,dissimulações e disfarces , etc.
No privilegiar a mulher como personagem primordial
de sua ficção, Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de
seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e
delicadas: as mulheres surgem como personagens
de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua
temática preferida.
Especialmente a partir do final da década de 1870,
sua obra traz,
para o centro das discussões, a questão da afetividade feminina : na ficção machadiana surge uma mulher que aspira poder escolher a forma de sentir e amar,
apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
No
assimilar e incorporar à sua obra
ficcional os elementos de sexualidade feminina e de desejo inconsciente ,
Machado remete a Freud, estabelecendo como nenhum outro escritor
brasileiro de seu tempo vetores e pontos
de interseção entre a literatura e a psicanálise : desde
o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos
próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as
mulheres, indo muito além da visão ingênua dos românticos,
do discurso dos realistas e naturalistas, criando um estilo de literatura não
apenas de observação das pessoas mas
sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes
aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente. Como sentencia
Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”. Machado de Assis é o grande
autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do
século XX.
Trazendo
para o centro das discussões a questão da sexualidade feminina, Machado faz
surgir nos romances e na maior parte dos
contos uma mulher que quer poder
escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algumas vezes, ao não poder
dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha
pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse
amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária,
era um luxo que muitas mulheres não tinham .
Especialmente a partir do final da década de 1870, seguindo a linha da literatura psicológica , seus
heróis e heroínas com seus eternos
conflitos, complexos, dúvidas e hesitações, na ficção machadiana surge uma mulher que aspira poder escolher a forma de sentir e amar,
apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
Importante notar, como que a reciclagem de
um processo desenvolvido por longos 36
anos (desde Ressurreição, em 1872),
em seu último romance,sua obra conclusiva –
Memorial de Aires -- a par de continuar a privilegiá-las,
valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a
figura impulsionada pela emoção, a ponto de preferirem os
tolos ao invés dos homens de espírito , mas a mulher proba, que pode ser amada e
admirada.
A tríade tolo -- mulher --homem de espírito, que permeia a ficção machadiana, sob uma teia
dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e de sua evolução literária,transportada para muitas
das obras ficcionais posteriores a 'ideologia' da obra Queda que as mulheres têm para os tolos -- seu
primeiro livro publicado, em 1861, intensamente gerador de controvérsias e especulações, de
imediato quanto ao gênero indefinido, de resto propulsor de acentuada polêmica
desde sempre quanto a ser tradução ou criação original de Machado (o que eu sempre sustentei, por fatores
vários que apontei e discorri em ensaio que escrevi a respeito : “Machado de
Assis,o subterfúgio,o feminino,a transcendência literária”), recentemente
dada como tradução segundo Jean-Michel Massa com base no panfleto publicado
anonimamente em 1859, com o título “De l'amour des femmes pour
les sots”, atribuído depois ao belga Victor Henaux .
A
trindade habita intensamente a maioria dos
contos do ciclo 1860 -79 , está nos romances Ressurreição, A mão e a luva e Helena
, anuncia-se em certa metamorfose na
transição representada por Iaiá Garcia,
transmuta-se inteiramente em Memórias
póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba
, reaparece sob enfática perspectiva em Dom Casmurro ),
por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de
Aires, neste a seara da redenção
total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada
da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito. os tolos –
para quem as mulheres têm acentuada queda (pelo menos no início...) -- são, via
de regra, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua
linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam
autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo
fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a
mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de
postura, convenções e relacionamento
sociais e por acreditarem numa vida além
e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas saibam que
, numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir uma atitude de reflexão sobre a
"realidade aética da vida" vis-a- vis com a desilusão com as
possibilidades da vida moral e
transmutar-se no cético. a transformação do homem de espírito se dá no
cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana.
Apesar do ‘aviso’ dado em Queda... ,
alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e
objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução
—embora o narrador insinue ser um meio ingênuo – para depois trilhar caminhos
mais audaciosos, o casamento por interesse ou conveniência como forma de
ascensão social (tema presente nos três primeiros romances e na maioria dos
contos no decênio 1860-70) passando a ser não apenas um empecilho à
concretização desse amor romântico mas a
mola propulsora da destruição, o problema – mais do que inerente a relações de
ordem social -- passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal da própria condição humana.
Não
por acaso na marcante década de 1870, pressentindo os novos tempos,convencido
da necessidade crucial de mudança,já
alterando seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua
estética literária, Machado começa a
apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e
mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos
quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de
atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente
desenvolvido nas obras posteriores – processo que o autor\narrador protagoniza
no homem de espírito-personagem, que passa do
alheamento e distanciamento,da
desesperança e da desilusão às gradativas adaptação e interação com a
realidade , daí assumindo postura reflexiva e consciente, por fim
transformando-se no cético ; no entanto,
se o homem de espírito muda, amadurece, recusando terminante e objetivamente as
mulheress que fingem e ostentam, a ‘nova’ mulher machadiana deplora a
frivolidade do tolo e passa a se inclinar para o homem de espírito , o
tolo continua com sua frivolidade e
estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica
romântica.
Machado,
como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais dos novos
tempos, convoca o leitor à acurada
reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e
deixa-lhe a responsabilidade do
julgamento conclusivo..
Transformam-se
protagonistas, transmutam-se narradores e leitores, alteram-se formas e ritmos
narrativos -- mudanças da mesma forma se dão na ‘ideologia’ temática : antes de
1880, os contos e os romances de Machado se centravam no namoro,paixão e
casamento o casamento,feliz ou infeliz,
consumado ou não, bem-sucedido ou não, por sentimento ou interesse , ao passo
que no pós-1880 aparecem com mais nitidez formas e situações de fragmentação e
diluição do casamento : há mulheres que flertam com a idéia da infidelidade,
mas acabam não o consumando : o mais importante a observar é que intencionada
ou não, fomentada ou não, incentivada ou não, quase sempre platônica, a
infidelidade afetiva feminina é sempre
contraposta, e redimida, na redenção
pelo amor -- o grande e central tema da
ficção machadiana ; todos os sentimentos impuros e espúrios,proibidos e reprováveis,
se idealizados , ou cogitados,em nome dele são no final por ele
regenerados.
A
aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o
quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica
e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da
mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social
da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.
O certo, porém, é que em todos os aspectos, a cada
leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência, sob todos os
sentidos, do feminino confirmando-se como uma verdadeira, real categoria
literária.
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