quinta-feira, 14 de março de 2013
Os jesuítas e Literatura Brasileira
a propósito da
escolha do novo papa – um jesuíta (pela primeira vez no pontificado) -- considerações sobre os
jesuítas e a própria formação e
constituição da Literatura Brasileira (e especificamente a fundação da cidade
de São Paulo).
o texto a seguir integra minha obra São Paulo, cidade literária [ 1ª. edição publicada em 2004; nova
edição – atualizada,aperfeiçoada – ainda sem editor].
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A par da própria fundação da Vila
São Paulo de Piratininga, a existência
literária da cidade teve na instalação da Companhia de Jesus e no
movimento de catequese seu impulso original , por meio de obras de caráter
‘semiliterário’, destinadas precipuamente a desígnios pedagógicos e
ecumênicos. O conjunto dos primeiros
textos escritos no Brasil, produzidos no período imediatamente posterior à
chegada dos portugueses, em 1500, até o ano de 1601, é conhecido como
"literatura de informação", "textos de informação" ou
"primeiras manifestações literárias" __ termo escolhido para se
referir a essa produção do período formativo, anterior à constituição de uma
literatura brasileira. São obras de reconhecimento e valorização da terra
escritas por jesuítas, viajantes estrangeiros e colonizadores portugueses encarregados de enviar relatos sobre a
nova terra ao rei de Portugal. Se hoje existe uma visão crítica do que
significou o ‘descobrimento’ do Brasil e o decorrente processo civilizatório,
não se pode negar que os textos produzidos naquela época são o melhor
testemunho não apenas dos eventos que deram origem ao que se tornaria o Estado
brasileiro, mas que principalmente revelam o pensamento político e religioso
que estava na base de todo o colonialismo.
Nessa fase em que a literatura colabora para a
consolidação da conquista do território e do domínio português, o mesmo
interesse "desbravador" une leigos e religiosos nos primeiros
registros escritos sobre a nova terra, chamada Terra de Vera Cruz, Santa Cruz,
dos Canibais, do Pau-Brasil, entre vários outros nomes.Ao lado de cronistas e
viajantes --Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães de Gandavo , Gabriel Soares
de Sousa,Ambrósio Fernandes Brandão, além das narrativas de viajantes franceses
e alemães, como de Jean de Léry e Hans Staden -- os jesuítas foram os autores
mais assíduos da época. Chegados ao Brasil em 1549, chefiados pelo padre Manuel
da Nóbrega, imbuídos da missão de catequizar o indígena, desempenharam papel
crucial no início da organização da vida administrativa, econômica, política,
militar, espiritual e social durante os primeiros anos da colonização.
“Os documentos jesuíticos não
são apenas história do Brasil: são essenciais à ética brasileira.” (Afrânio Peixoto,in “Introdução” a Cartas do Brasil, de Manuel da Nóbrega)
A maior significação da obra dos jesuítas no Brasil reside na heróica
tentativa, nos séculos XVI e XVII, de contestar o tipo de sociedade em vias de
formar-se, substituindo-a por um modelo teocrático de civilização, sem
escravos, nativos ou importados. Os jesuítas -- em sua dupla atividade na
Colônia: de magistério e de catequese(o índio como a matéria-prima de uma nova
sociedade) -- tinham um projeto para
o Brasil -- i.e. sem o objetivo de fazer da colônia uma simples máquina de
alimentação de necessidades exteriores a ela.O insucesso do projeto jesuítico
no Brasil Colônia explica por que a primeira manifestação literária brasileira --
a literatura dos catequistas, a primeira literatura feita para o Brasil --
ficou sem sucessão histórica e perdeu a consistência de registro historiográfico perene.
É
consensual, aliás, que as manifestações literárias, ou de tipo literário, se
deram no Brasil até a segunda metade do
século XVIII sob “o signo da religião e da transfiguração”-- a religião como a
grande diretriz ideológica, justificativa da conquista, da catequese, da defesa
contra o (outro) estrangeiro, da própria
cultura nacional que se pretendia implementar : nela se abriga toda a obra de
José de Anchieta e muito dos escritos epistolares de Manuel da Nóbrega [ pela
transfiguração, o “espírito culto exprimindo uma visão da alma e do mundo, em
caprichoso vigor expressivo, manto rutilante a interpretar a realidade” ,
vieram a poética de Alexandre de Gusmão,
o romanesco de Teresa Margarida Orta, as elucubrações ensaísticas de Matias
Aires, já no século XVIII].
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Ainda
que modestos, quanto a méritos
artísticos, estéticos e literários, os textos compostos pelos jesuítas -- com
as obras de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta __ inauguram, no terreno
propriamente literário, e não apenas documental, ‘de informação’, a história
das letras no Brasil: a mais antiga página literária brasileira é o Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito por Nóbrega em 1557 ou
58. Os escritos de Manoel da Nóbrega, por exemplo, formam um marco literário
genuinamente produzido no Brasil : com a carta que noticia sua chegada ao
território brasileiro, inaugura, em 1549, a literatura informativa dos jesuítas. Em
suas cartas encontra-se o início da
história do povo brasileiro, evidentemente sob o ponto de vista do
catequizador.
Foi com José de Anchieta que a produção dos
jesuítas atingiu seu ponto máximo. Ele se destaca como o único autor do período
cuja produção extrapola o caráter meramente histórico. Anchieta chegou ao país
em 1553, no séquito do segundo governador-geral de colônia, Duarte da Costa ;
escreveu em latim, português, espanhol e tupi, foi poeta lírico, dramaturgo,
professor, epistológrafo e filólogo. É autor de poemas líricos, épicos, autos,
cartas, sermões e da primeira gramática da língua tupi.
Não são poucos os historiadores da literatura que
atribuem a José de Anchieta o papel de fundador da literatura luso-brasileira.
Anchieta foi a primeira grande figura de
literato (não o primeiro grande escritor) do Brasil Colônia. Utilizando o
português, o espanhol, o latim e o tupi --_de que fez a primeira gramática
conhecida --_ compôs uma obra que percorreu vários gêneros literários: o
sermão, a carta, o teatro, a poesia.A poesia,de cunho místico, embora fiel aos
padrões e “medidas” dos cancioneiros medievais , expõe a fé católica ambientada
no Novo Mundo -- destacando-se os poemas “Do Santíssimo Sacramento” e “A Santa
Inês” , e o célebre “Poema da
Bem-Aventurada Virgem Mãe de Deus Maria (De Beata Virgine Dei Matre Maria)”,
com 5786 versos, escrito na areia da praia de Ubatuba, quando prisioneiro dos índios tamoios.
Dedicado igualmente à arte epistolar,Anchieta reflete em suas Cartas Jesuíticas -- importantes documentos
informativos --o domínio da escrita e do
ofício de escrever.Sobretudo para o teatro -- impregnando seus autos de conceitos morais e pedagógicos --_Anchieta
produziu duas manifestações dramáticas fundamentais : Na Festa de São Lourenço(1583), peça trilingue(português, espanhol
e tupi) em quatro atos, com dança cantada; e Auto da Pregação Universal, representado em Piratininga em 1567 --
a primeira encenação teatral realizada na
cidade e no estado de São Paulo, e
no Brasil.
Anchieta
criou autos religiosos em que convivem diabos e santos, anjos e personificações
alegóricas, Cristo e a Virgem, soldados e mercadores, índios e padres jesuítas.
Os diabos têm nomes tupis (Saraiúva, Aimbirê, Guaixará) e surgem em cena pintados
de vermelho, emplumados e tatuados, falam tupi, fumam e se embriagam,
declaram-se antropófagos e assassinos, adúlteros e luteranos. Era dessa forma
que o padre transformava seu teatro em instrumento de convicção, persuasão e
catequese.
sexta-feira, 8 de março de 2013
Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?
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Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930
[Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias
inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as
mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao
declarar : “tendo um quarto para si e renda própria” -- ditames abrigados no livro
A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ], defendida pelas feministas européias de 1970, uma ‘escrita feminina’
ganhou corpo (e forma) na literatura .
Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) passaram
a ter – ou adquiriram, por ‘méritos próprios de qualidade e personalidade -- voz própria, estilo próprio, linguagem
própria, temática própria, longe de “simplesmente reproduzirem modelos
falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” acentua a ensaísta Luce Irigaray:
Qual seria afinal
uma ‘linguagem feminina’, como se expressa
um discurso essencialmente
‘feminino’? existe afinal uma voz
especificamente feminina ?
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades
para uma definição precisa, entendo -- e
sustento, convicto -- existir uma linguagem literária feminina com elementos,
valores e vetores próprios, nitidamente percebidos na prosa ficcional, na
poesia e no teatro, e que só fazem
acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral) – linguagem marcada
pela subjetividade, por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética,
lírica , uma escritura com ‘o corpo e a alma’.
Na ficção feminina, o (originariamente ditado pelos
cânones românticos) amor -- condimentado pelo erotismo, por vezes intenso --
deixa de ser tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, e até ao
questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em
experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, o ritmo
‘labiríntico’ no lugar da estrutura
linear, intertextualidade, tendência a impregnar a escrita com elementos
de oralidade, foco narrativo
múltiplo, intenso fluxo-de-consciência..
Certamente pode-se encontrar desses elementos na
denominada ‘literatura masculina’– e efetivamente encontra-se : como negar serem
essencialmente ‘femininas’ a linguagem literária, o estilo, a escrita de Marcel
Proust, de Flaubert, de Balzac, ou muitas passagens de Tolstoi, e mesmo de
Shakespeare, para citar gigantes da literatura universal – o que,de algum modo,
desmistificaria esse tipo de distinção acentuada, da qual, enfatizo, não sou
partidário. Gratifica-me bastante acentuar que a escrita feminina, marcante
como é, ostenta suas características próprias, peculiares, plena de,digamos,
‘personalidade literária’, assim como a possui,em sua devida proporção, a
‘literatura masculina’.
E no que enfatizo a concreta existência e expressão de
uma literatura feminina,vis a vis com
uma ‘literatura masculina’ [sic],
longe muito longe de ratificar, conforme certas críticas de contingentes
feministas, uma indesejável,digna de repúdio “divisão de sexos”, ao contrário
justamente confere identidade própria e plena personalidade às
linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher. A meu juízo,
valorizo-as, dignifico-as,
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uma escrita feminina brasileira, sim
Muitos constataram — e
comprovaram — a influência negativa da literatura em relação à posição da
mulher na sociedade, "os literatos, romancistas e poetas explorando a
concuspicência, a imoralidade e a luxúria que chamam amor; e naturalmente como
nas relações entre senhor e escrava só pode haver obscenidade, os homens de
talento produziram montanhas de livros onde a patologia mundana do amor é
rebuscada ao mais íntimo e profundo limite." Com o tempo e a evolução dos
conceitos sociais, almejada uma efetiva
mudança na sociedade, tornou-se imperativo repensar a condição feminina,
enxergando a mulher, não como um complemento da família, mas como importante
agente de mudanças pela função que exerce na sociedade.
No Brasil, o surgimento de
mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto
da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos
direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina
começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e
passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram
então os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a
melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica
masculina. [afinal, na constituição da
família brasileira sempre imperou o pater
familias, ou seja, o poder nas mãos
do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua
mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da
formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito
consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os
direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de
Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código
Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada
para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo,
exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a
única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança
familiar. ]
O que não impediu, porem, a
formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como
personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio
sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório
preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e
solidificação de um movimento que se
poderia chamar de estética feminista.
Na literatura brasileira,
considera-se o romance Úrsula (1859),
da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina.
O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a
donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da
história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da
protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
No entanto, de modo geral
a escrita praticada por mulheres esteve
ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o
século XIX , na vigência do Romantismo – o que soa algo inusitado, porquanto
justamente a mulher como leitora foi o grande,crucial, basilar
elemento,primeiro pela
prática de leitura no país, responsável pela existência e proliferação de
escritores e da própria literatura
brasileira. Se não totalmente ausente do mercado, restrita a
colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação
no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora
à interpretação de Virgina Woolf,
da década de 1930).. As primeiras manifestações de escrita feminina levadas
oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na
‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? seria o
Romantismo ‘mais apropriado’ para a
expressão da écriture féminine?,
reflito...]
Loas, todas as loas,
portanto, para as pioneirissimas Rita
Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa
Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina
Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia
Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Alta de Souza, Clarinda da Costa
Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina
dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana),
Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém
de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália
Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina
Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria
Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de
Castro Guimarães, Honorata Carneiro de
Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó,
Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran,
Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do
Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de
Albuquerque. Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a
Gilka Machado e Maria Lacerda de
Moura.
Sob o risco de não elencar aqui
todas as escritoras de hoje, o que seria praticamente impossível,contemporaneamente
a escrita feminina brasileira encontra
expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria
Alice Barroso, Maria Helena Cardoso,Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles,
Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hist, Adélia Prado, Lya
Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma
Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam
Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ;
e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah
Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski. O ensaísmo abriga Flora
Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira
Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo,
Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende. E outras e outras e outras,
muitas outras
Os homens e as mulheres
Naquele século XIX e na primeira quadra do século XX,
no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’:
quatro escritores-homens se destacaram
por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim
Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis
pendores” em especial em A Moreninha e em
inúmeros contos. José de Alencar traçou o mais completo
retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do
romantismo, notadamente na trilogia Senhora, Diva e Lucíola, além de
nas novelas Cinco minutos e
A
viuvinha ,e nos romances A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação.
Há de se destacar, porém, Lima
Barreto: debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na
década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e
crônicas em jornais e revistas nas quais a propósito de crimes ou
julgamentos, ataca os homens “que se
atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio,
nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos
julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção
croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino,
voto feminino, direitos femininos.
A rigor, Lima Barreto , que
nunca silenciou sobre seu tempo, não poderia mesmo ficar alheio à situação da mulher na realidade
social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas
transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances, escreveu sobre a mulher em
artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade,ora a criticando, por
vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se
“antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas
defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher
no serviço público (“... rendosos cargos
para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das
operárias ?...”), mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo,
retrata a mulher pela ótica comum, Lima
destila sua ácida ironia crítica sobre a
mulher ,mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens . Longe,
muito longe da falsa, equivocada acusação de
misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista brasileiro
— o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra as
mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano, Lima Barreto
sempre dá à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional :
nos romances, contos, artigos e crônicas, apontamentos e notas, comenta a
situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades educacionais
e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a desigualdade de
julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da prostituição e o
início do movimento feminista no Brasil — e sobretudo defende
intransigentemente a mulher “que são “como todos nós, sujeitas, às influências
várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos,
os seus amores". Uma ambigüidade implícita e explícita em seus artigos não
permeia o retrato da mulher elaborado em seus romances, novelas e contos, em
que elas têm sempre atitude e
comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e Edgarda
em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos
Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em
contos, etc) .
Porém, nenhum escritor brasileiro do período ‘edificou’ tanto
a mulher como personagem capital e leitmotiv
básico de seus textos como Machado de Assis. Ele escrevia sobre mulheres e para mulheres.
Amores e frustações femininos eram temas constantes, sempre presentes o ciúme,
o adultério, a prostituição, e as personagens femininas ocupam lugar
privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e na maioria dos contos.E mais :Machado sempre escreveu para periódicos
cujo público era predominantemente feminino, primeiro no Jornal das Famílias ,depois em A
Estação.
Nas entrelinhas de seus contos,
romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: argumentava
que a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica,
tendo direito ao amor e à liberdade -- daí, seus temas mais constantes: o ciúme
e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a
exemplo de Flaubert, Balzac, Eça, e mais tarde Freud . [aliás, como Roberto Schwarz
diz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois” -- nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta
de forma aguda, a la Freud, as
sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’,
descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal
elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a
percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde
as primeiras obras.]
Na a maioria dos romances, a
mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da
relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, a
figura masculina sendo até desnecessária; é comum no romance machadiano, que retrata a
sociedade de seu tempo, mulheres fortes, viúvas que não mais casam, como em Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Casa Velha,
Memorial de Aires. Em toda sua obra,
Machado enfatizou o personagem feminino: mesmo em sua primeira fase, Livia,
Guiomar, Helena, Iaiá Garcia, Lalau já dominavam; na segunda fase, as mulheres --
Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, Fidélia, Carmo --são personagens de grande
densidade psicológica
Um número surpreendente de
contos são o que pode ser catalogado como
‘estudos sobre a mulher’: “Singular ocorrência”; “Capítulo dos chapéus”;
“Primas de Sapucaia!”; “Uma senhora”; “Trina e una”; “Noite de almirante”; “A senhora do Galvão”;
“Missa do galo”; “D. Paula”, encenam vários tipos femininos e situações com as
quais as mulheres se defrontam na vida comum . Em todos, estão presentes os
elementos básicos da ficção machadiana: ciúme, adultério, e prostituição.
Para muitos estudiosos, Machado
era mesmo ‘feminista’ (eu, particularmente, não chego a tanto...)-- e a cada
leitura de seus contos, romances e
crônicas nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.
p.s.. para não
restarem dúvidas :no que enfatizo a concreta existência e expressão de uma
literatura feminina, vis a vis com uma
‘literatura masculina’ [sic], longe muito longe de ratificar, conforme certas
críticas de contingentes assumidamente feministas, uma indesejável,digna de
repúdio, “divisão de sexos”, ao contrário justamente confere identidade própria
e plena personalidade às linguagem,escrita e estilo praticados literariamente
pela mulher. A meu juízo – isso sim -- valorizo-as, enalteço-as, dignifico-as. [MR]
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