segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Machado de Assis e “consciência negra”


[a propósito do 20 novembro]

- para dirimir todos os equívocos acerca de uma suposta,absurda ‘alienação’  à questão da negritude

Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como  funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual  emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação --que, como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter  inserido o negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum ‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Além de tudo, não se queira exigir de Machado uma postura – a mesma, p.ex., de  abolicionistas (muitos deles seus amigos) , de outra verve e atitude – de militância ativa, discursiva, panfletária : nada disso fazia parte de sua natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou na vida e na própria escrita literária.
 Machado fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de  crônicas, de poemas, de peças teatrais,  de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns  romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado  “aburguesamento” e  de “denegação das origens” em sua obra.
A tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de cinco contundentes contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores; é solapada ao se ler,por exemplo, 17  crônicas(em 1864, 1865,1876,1877,1878,1883,1885,1887,1888,1893, 1897);  perde vigor ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na  novela Casa Velha(1885) e  nos romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências,  encontra-se  no cerne da concepção desses seis  romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – com a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o condizente  grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país

A crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se  diretamente ao público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente   expressou sua implacável crítica ao escravagismo Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta naqueles parlamentares  que intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular, aliás, convém saber  – como ressalta  o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não  se opunham à escravidão].
 Na verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política, e até mesmo sobre economia. Tinha,sim senhor,  opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República --   e é possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de  Machado : tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua  escritura literária, de uma  crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, a qual  no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor de  sua produção não-ficcional centrava-se  na questão da identidade nacional — preocupação expressa claramente nos  ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em 1858), “Instinto de  nacionalidade”(de 1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
 Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando  as tensas relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.
Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático, narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado  quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888, vale dizer já implementada a Abolição,  as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a  tal,  Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica -- não se furtou.
 Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte  de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica,  desnudando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito  testemunho incomparável  sobre a vida política e institucional brasileira  do século XIX.  





quarta-feira, 14 de novembro de 2012

República , 123 anos - os intelectuais e o militante


O mês de novembro registra duas efemérides dignas de registro – no dia 15, a instalação da República, fato de fundamental importância política, institucional e social na história brasileira, em 1889 ; e no dia 1º.,em 1922, a morte de Lima Barreto, um dos maiores escritores que o País já teve em seu cenário cultural.
Dois acontecimentos extremamente significativos, separados por 33 anos, mas irremediavelmente entrelaçados e integrados – até porque Lima Barreto, ao contrário dos intelectuais da época, foi o mais veemente e intransigente crítico do novo regime e da pretensa ‘modernização’ anunciada.
República, 123 anos, e 90 anos sem Lima Barreto depois, ambos os eventos propiciam estimulantes reflexões, não apenas sobre a política e a literatura brasileiras mas em especial sobre a  própria institucionalidade do País.
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A  República, os intelectuais , a literatura militante de Lima Barreto

        Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais solidamente arraigada nas teorias cientificistas de 1870  e no espírito progressista da época parecia estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”:  as idéias circulavam então  mais livremente, num ambiente que Evaristo de Moraes [Da Monarquia para a República ; s.ed., Rio de Janeiro, 1936 ] qualificou de “porre ideológico”, um verdadeiro  mosaico no qual era predominante o liberalismo - manifestando-se especialmente entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava  alguma voga de anarquismo em  Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias explícitas ao socialismo em Martins Fontes, Olavo Bilac, e até  anti-racismo declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim.
        Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia: contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação —no campo da produção intelectual  intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907) — e remodelar e fortalecer  o Estado (o que obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no liberalismo....).
        Já no dia 15 de novembro de 1889  os intelectuais registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão,  João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet -- estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos : “Os abaixo assinados,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República.
                Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes militares do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel dr. Benjamin Constant.
                O povo do Rio de Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou  como nova forma de governo nacional a República.
                Esperam os abaixo assinados,representantes do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual,instituindo a República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada nacionais ! Viva o povo do Brasil !”
         O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro : “O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela grande parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores  mais enérgicos e mais desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República,as duas grandes forças lá estão ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro ! ao futuro,modeladores de povos,construtores de nações ! [cf. Silvio Romero,Novos estudos de literatura contemporâneas ; s.ed., Rio de Janeiro, 1898 ].
         No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação  na política—  o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado  fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.
         As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,que se deu  por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se  : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de  Lima Barreto. José Veríssimo, no artigo“Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve: “Todos se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”. lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.
         No campo político,os intelectuais  até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras  do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando  e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos.
         Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas ,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados ,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os  intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si -- eficiente Rui Barbosa nesse trabalho de  ‘cooptação’ -- o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime , constituindo o que à época se auto-denominaram “República dos Conselheiros”.
          Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua,episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca  de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao Encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional”[Visconde de Taunay, O Encilhamento] e  decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
          O certo é que a decepção com a República e o ‘espírito’ inerente ao novo século, “o século da modernização e do progresso”, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’, acarretando, por uma razão ou outra , a necessidade de adesão quase maciça dos literatos  ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno cultural mais marcante dos primeiros tempos do século  XX. O significativo desenvolvimento dos meios técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiu o crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas revistas ilustradas , ambos incluindo matérias literárias.           
           A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer mormente da literatura, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República”.
       No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, estava Lima Barreto – por essa época já respeitado como articulista e cronista e reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentavaele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época (...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza” [Impressões de leitura  ; ed. Mérito ,Rio de Janeiro, 1953].
         Lima Barreto impôs — com sua escrita simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc  — os prenúncios do Modernismo logo depois  rompante na cultura brasileira[curioso notar que Lima Barreto morreu no mesmo ano de 1922, em que eclodiu o movimento], cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa  despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e  levou p. ex. Sergio Milliet a escrever  “(...) O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres”[artigo “Noticiário’, in O Estado de S.Paulo,  11.11.1948] : nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a ‘descoelhonetizar’[ref. a Coelho Neto,então epígono da escrita rebuscada e cheia de floreios retóricos] a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da  revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números.
        Assim, na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então, aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da  língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional  que prenunciava a linguagem modernista. Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do “sorriso da sociedade” apregoado por Afrânio Peixoto, Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam; digamos não a uma  literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e políticos”  (...) “a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”
        Dono de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea . Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro,1923].
       Esse ideal, entendia ser impossível cumprir sob a égide acadêmica, como expõe taxativamente naquela  entrevista à  A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço glórias, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita coisa...”
                Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto  exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. A “esperança” mencionada por Lima Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.






quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre festas, f eiras e eventos literários -- e novos modelos e formatos,modos e meios


É tempo de  reflexões  inerentes a possíveis (para muitos, almejadas) vertentes não apenas especificamente para os  cenários editorial e livreiro, por extensão literários, do país no momento, mas também generica e essencialmente das práticas e  modos de leitura – tema sempre recorrente,imperioso na vida cultural de qualquer nação.

Três eventos literários, no Rio de Janeiro, realizados com bastante  sucesso e expressividade,e de farta repercussão , são extremamente representativos  da  geração  de elementos  para tais reflexões: a 12ª.. "Primavera dos Livros,dada a público no Museu da República, em setembro (e que em  novembro retomará sua edição paulistana), a congregar editoras não entre as maiores  mas por certo algumas das mais operosas; o “FIM - Fim de Semana do Livro no Porto”, ocupando apoteoticamente o Morro da Conceição, em  outubro, uma ‘récita’ de palestras e diálogos em torno do livro e da literatura, a reunir um timaço de escritores,editores,livreiros,jornalistas,intelectuais de diversos naipes; ainda no Rio acrescente-se, agora em novembro : a FLUPP- Festa Literária Internacional das UPPs” (de 07 a 11),  no Morro dos Prazeres,com debates, performances, música e leituras, trazendo em si conotações e características diferenciadas e bastante significativas, em especial proposta a se consolidar como importante vetor de exposição,informação e difusão da agora denominada “literatura\ cultura  da periferia”; a “Fliaraxá - Festival Literário de Araxá (de 08 a 10), o primeiro na cidade mineira abrigando encontros  com vários escritores (Zuenir Ventura, Fabrício Carpinejar, Luis Fernando Veríssimo e Milton Hatoum, entre outros);  a “Fliporto --  Festa Literária  Internacional de Pernambuco (de 15 a 18),em sua 8ª. edição  -- já tradicional,, que abriga inclusive um Congresso Literário (!), a reunir escritores nacionais e internacionais em painéis com palestras, entrevistas e debates,
Todos eles a transcender o  escopo de um evento de exposição e venda de livros para se constituir em notável cenáculo temático, tendo – em painéis,palestras,diálogos,depoimentos – a Leitura,seus fomento,estímulo e prática, e o Livro, suas formas,formatos e significados, como tema,mote e leitmotiv.
Quando menciono esses eventos se constituírem em verdadeiros geradores de  reflexão  reporto-me de imediato às discussões e análises que ora se dão, com maior intensidade, com relação à bienal do Livro, cuja recente edição,em São Paulo, mostrou-se esvaziada,’fisicamente’  por parte e no seio do próprio meio editorial-livreiro, e conceitualmente por força do crescente  pensamento crítico quanto ao tradicional "modelão”,ou "formatão" (assim são definidos pelos profissionais do ramo) da bienal, ao mesmo tempo em que as atenções se voltam cada vez mais para os eventos regionais, essa profusão (benéfica,digo eu) de festas e feiras pelo país(Belém, Fortaleza,Ouro Preto, Paraty, Porto Alegre,Passo Fundo -estas duas últimas bastante tradicionais, já de longa data): persiste mesmo o intento, entre editores, livreiros e profissionais do setor, de fortalecimento e incremento a esses eventos regionais , os quais -- tanto por suas próprias concepções como pelas efetivas programações realizadas até aqui --têm oferecido os elementos de uma presente reflexão conceitual sobre festas literárias : constituírem-se menos em cenários de venda e exposição de livros e mais de  incentivo a leitura – certo é que nas últimas edições a bienal tem, embora de modo incipiente, incrementar certos painéis,mesas-redondas, debates, até mesmo ligeiras oficinas acerca de temas específicos, reflexões sobre literatura, promoção da leitura,etc. As feiras regionais,e festas literárias como “Primavera dos Livros”,“FIM”, “FLUPP”,”Fliaraxá”, “Fliporto”, com efeito oferecem  o que faz parte das proposições preconizadas para  reformulação conceitual da bienal.
Só que... .entendo que o assunto, e a questão, vão muito além, a exigir reflexões,meditações amplas e profundas,reformulações de pensamentos e concepções,e sobretudo ações concretas de superação de incompreensões e distorções conceituais. Especificamente a requerem considerações e observações justamente acerca do livro e da leitura no país.
Para início de conversa, 
em minha opinião: ainda vejo extrema validade na bienal -- mesmo sob as formas de seus  'modelão e formatão, frequentada pelos contingentes daqueles parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ...  2 livros por ano (!); ainda que com as características de ‘feirão’, etc  -- evidentemente admitindo, e concordando plenamente, com a necessidade de certas alterações, ajustes e adaptações. A validade que sustento tem em vista o chamado 'grande público', por força do comprovado fato de a bienal representar a contrapartida real,concreta, a um tipo de comportamento desse '(não)leitor comum': sua relação com a livraria, tida e vista por ele como uma espécie de 'templo sagrado', espaço de sacralização -- apesar de tudo em termos de atrativo,utilidade, conforto, etc que as livrarias oferecem hoje (café,poltronas,ambientes de leitura,etc) -- a inibi-lo e refrear sua possibilidade de chegar ao livro. Na bienal, justamente por seu ‘modelão’ -- que de resto permite uma exposição mais abrangente quase completa, do conjunto dos acervos de editoras -- por seus cenários 'populares' e descontraídos[sic], propicia um sensível processo de dessacralização.Ainda mais se propostas,como tem ocorrido gradativamente (mas ainda  incipiente),expandir alguns focos no temático,como de resto anotei
        Mas... por  outro lado -- ou acima de todos os lados -- um espectro ronda (alvissareiramente, saúdo eu) a bienal e as livrarias, por extensão as editoras, a totalidade do mundo editorial-livreiro: o e-commerce, notável em sua propriedade (benfazeja,enfatizo) de mudar a relação do leitor,e do produtor e do revendedor, com o livro -- dinamizando-a,enriquecendo-a,valorizando-a, aprimorando-a.

'esqueceram' do digital ?

Bem, referi-me aos “(...) parcos e raros leitores para os quais todas as pesquisas apontam a média de leitura de ... 2 livros por ano[!]”: talvez alguns dos que aqui me lerem  venham a contra-argumentar que na verdade o índice de leitura do brasileiro,apontado pela recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” – e registrado no oportuno livro sob mesmo título(org.Zoara Failla;edição IPL e Imprensa Oficial.) – é na verdade de 4(quatro) livros por ano,e não 2. Sim, o número em ‘estado bruto’ é esse, mas excluídas as obras indicadas pelas escolas e aquelas compradas pelo governo para distribuição à rede escolar e bibliotecas, e considerada apenas a leitura espontânea chegamos à  lamentável  marca que registrei.
Aliás, aproveitemos a oportunidade e examinemos certos números e determinados fatos inerentes ao levantamento "Produção e vendas do setor editorial brasileiro", realizado pela Fipe por encomenda da CBL e do SNEL. Por exemplo, se o mercado editorial cresceu 7,2% em volume -- o brasileiro comprou 3,34% mais, e o governo, 13,7% mais- e  7,36% em faturamento em 2011, comparativo a 2010, computado o efeito da inflação (6,5% pelo IPCA), o aumento real foi de ... irrisório 0,81%; e – atenção ! -- o governo,que representa 39,5% do mercado, teve papel fundamental nos números do faturamento do setor, uma vez que as vendas de livros para programas e órgãos governamentais tiveram crescimento de 21,2% (valor não deflacionado).E ao se considerarem os dados de mercado (que engloba todas as vendas com exceção daquelas para governo), o cenário mostra que o setor cresceu em faturamento 3%, mas, levando-se em conta a inflação, houve queda real de 3,27%.
Bem, há de se considerar por outro lado,segundo  estudo recém-publicado pela Associação Internacional dos Editores ([IPA, na sigla em inglês]que o mercado de livros no Brasil, com R$ 6,2 bilhões de faturamento (a CBL mediu em R$ 4,8 bilhões em 2011) e 469,5 mil exemplares vendidos, cresce e já aparece como 9º no mundo..
Em minha opinião, são questionáveis esses cenários de um modo geral . Todos os levantamentos,pesquisas e computações retratam,reportam-se e registram, no tocante a índices de leitura, de produção, de vendas, de faturamento, etc, única e exclusivamente os dados inerentes a livros impressos – sem catalogar, até porque não existem ainda mecanismos para tal, esses mesmos  dados para os livros digitais e todas as formas e meios de leitura intensamente,e irreversivelmente, presentes hoje, nos tablets,iPads,iPhones,portais,sites, diversos links pela internet e demais plataformas digitais.
       Vou adiante para uma desafiadora conclusão: lê-se mais que as (incompletas) estatísticas apontam; e produz-se e vende-se muito mais hoje no Brasil, e em todas   faixas etárias e todos os tipos de textos !

e-books : claras inverdades e ... realidades nítidas

Em outra – melhor dizer : paralela – seara, pesquisa da Câmara Brasileira do Livro- CBL e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros- SNEL cataloga o lançamento em 2011 de 5.235 títulos no formato digital, e aponta começarem eles a fazer presença e ganhar corpo  no panorama editorial cerca de 9% dos mais de 58 mil títulos totais lançados em 2011. E as vendas de e-books começam a ganhar volume com lançamentos simultâneos nos meios físico e on-line.
A mim, soa algo inócuo o alardear um (discutível)“fiasco das vendas dos e-books”[sic], continuo a pouco acreditar nessa conclusão. Concomitantemente, em especial as editoras deveriam estar atentas e agradecer pelo que os e-books estão a lhes proporcionar: dados fornecidos pelos aplicativos que os leitores de e-books usam, quanto a tipos de obras e autores, gêneros, frequência de leitura, extensão das obras, etc propiciam a livrarias digitais -- e editoras -- definir estratégias de mercado: o Saraiva Digital Reader, aplicativo da livraria Saraiva para várias plataformas, coleta dados como o tempo de leitura e os dias da semana em que o usuário mais lê ( e nos EUA,  a Barnes & Noble,com a coleta de dados sobre os leitores, decidiu lançar uma seção de livros curtos depois de ver que seus leitores costumavam abandonar obras longas de nãoficção pelo meio). Quer dizer: : ao contrário do livro impresso -- lido e manuseado pelo leitor na privacidade,sem oferecer indícios e elementos de seus hábitos,gostos e ritmos de leitura, os e-books tornam-se instrumentos fundamentais de formulação de estratégias e ações editoriais e comerciais por editoras e livrarias. Surgiria, por certo, a questão -- a que leitores de todos os matizes podem responder  : muito bom para elas, mas será isso bom para vc.?        
        Considero isso ótimo: não vejo nenhum tipo ou grau de 'invasão de privacidade'.
       Para arrematar: o digital faz crescer os índices de leitura no Brasil ! quando sustento que lê-se muito mais no meio digital do que revelam as simples(e simplórias) estatísticas sobre vendas , e leitura, de e-books, se já não bastasse citar o quanto de textos,obras e narrativas literárias que se abrigam,e são consultadas e 'downloanizadas' por milhares de pessoas diariamente, nos portais e sites de literatura,em blogs, nas redes sociais como um todo. Um exemplo marcante: a coletânea Geração subzero (org. Felipe Pena;editora Record.), reunindo textos veiculados exclusivamente no twitter -- com um subtítulo bastante significativo, “20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores” – e entre eles alguns ‘campeões de vendas’ no mercado (formal)  livreiro, como  Thalita Rebouças, André Vianco. Outro exemplo: a editora Intrínseca vem publicando diariamente, em seu twitter, o texto “Caixa preta”, da americana Jennifer Egan, escrito originalmente em bloquinhos de até 140 caracteres -- no que, aliás,o e-publisher  Claudio Soares fora pioneiro, ao 'tuitar', ainda em 2006, fragmentada em pedacinhos, sua (excelente) obra Santos Dumont número 8..
      As ações e realizações em blogs, essas ações no twitter e em geral nas  redes sociais constituem exemplos claros, taxativos de algo que vem sendo chamado de narrativas digitais, literatura eletrônica ou narrativas em rede, uma 'literatura eletrônica" caracterizada basicamente por interatividade, hipertextualidade,a não linearidade, a multimídia -- contundente,e inquestionável prova de como o criar textos literários, construir narrações,contar histórias vem sendo remodelado com e pelas novas tecnologias,gerando em especial novos,e nunca tão dinâmicos na história cultural,modos,meios e formas de leitura,conhecimento.aprendizado,entretenimento, lazer e de novos comportamentos.[e principalmente estimulando meu ceticismo com relação a tantas estatísticas que proliferam pela aí...]
        Vale dizer, obras e textos em mídias, veículos e suportes outros que não aqueles metódica e estatisticamente computados. 

☺ Então (sem chegar a ser uma conclusão, porquanto temos de avançar vigorosamente em todas as reflexões possíveis e praticar todas as ações necessárias), dispostos uns, subjacentes outros, encontram-se muitos elementos, tópicos e questões a permear indissoluvelmente o livro, e inerente a ele, a leitura no país. Que, de um lado, a bienal,as festas literárias regionais e  aquelas dotadas de especificidades ,auspiciosamente proliferantes hoje, expressivas de uma alentada reconceituação de eventos ; per se, o meio e a mídia digital a proporem e propiciarem notáveis perspectivas de difusão da matéria literária e de circulação do conteúdo do livro e,por extensão das extensões, oportunidades,possibilidades e fomento da leitura --- tudo isso seja efetivamente incorporado,crescente e consistentemente, na agenda de todos os setores e searas  educacionais-culturais,editoriais,livreiras, literárias,intelectuais e mesmo sociais.






quinta-feira, 1 de novembro de 2012

LIMA BARRETO, 90 anos -- IV

no dia 1. novembro de 1922 -- portanto há 90 anos -- morria Lima Barreto. qual um réquiem, apresentam-se aqui,a cada dia desta semana, claves temáticas às quais ele dedicou muito de suas reflexões,suas críticas
,seus escritos.

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                                                            Lima Barreto e o Modernismo





 De imediato, convém realçar: o Modernismo começou  exatos 18 anos antes. Em 1904. Com Lima Barreto, na confecção dos romances Recordações do escrivão Isaias Caminha e Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá, escritos simultaneamente a partir desse ano (ele preferiu - por razões que ora eu estudo- publicar aquele primeiro, em 1907; este, somente em 1919) ao expressar, ainda incipientes, os primeiros elementos-indícios depois assimilados pelos modernistas, manifestos tanto  na concepção ‘filosófico-literária’ quanto na linguagem das duas obras, ambas carregados de muitas intertextualidades temáticas, ambas  representando, emblematizando e sintetizando decisiva guinada de concepção  ficcional e  a  própria evolução literária barretiana.
 Vale notar, ainda, que Isaias Caminha e Gonzaga de Sá estão, por sua vez e cada um deles, ‘ligados’ a “Clara dos Anjos”,obra que  aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este  mantido essencialmente o mesmo mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo : a primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo; a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos ; a terceira, um romance ‘acabado’,veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947. Tanto Clara..., em suas três versões, como Isaias Caminha e Gonzaga de Sá  expressam crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela (de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, denunciadora de discriminação social-racial) e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco (a de 1907 e a de 1919,ambas obras crítico-satíricas ao mundo jornalístico e literário),mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos), assumindo a observação crítica, demolidora, da  vida política e institucional inerentes à República.Na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões,  como de Isaias Caminha- e de Gonzaga de Sá,- Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.
As três obras, mais do que a evolução literária, sintetizam a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e,  no desvio  do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a  conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio O que é a Arte ?, e  “percepção religiosa da arte”), de resto autor da  maior,e crucial,  influência absorvida por Lima do começo ao fim de  sua obra,em especial no que tange à  transformação de  ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão”.
Guinada, para reflexão e discussão do país e da sociedade, da concepção de literatura e também – e significativamente – da escrita e da linguagem literária,de resto elementos que se revelariam,desdobrariam e influiriam no Modernismo.
Lima Barreto impôs na ficção e na nãoficção  — com seu estilo simples, direto e objetivo, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc -- os prenúncios do Modernismo logo a seguir  rompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa  despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e  levou p. ex. Sergio Milliet a escrever  “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” (artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo,  11.11.1948); concomitantemente, nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a “descoelhonetizar”(ref. a Coelho Neto) a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da  revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números
Importante lembrar que a época era dominada por duas vogas literárias, de um lado o parnasianismo, inócuo, oco e ressonante, de outro, a linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — ambas, uma literatura  impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante.No Rio de Janeiro, os intelectuais e literatos,de certa forma alheios às contradições, logo se integraram ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos — no que, delinearam o movimento literário da chamada Belle Èpoque carioca,  definida por “uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo-)refinada, de temática elitista,de muito epigonismo, exercícios academicistas, vocabulário rebuscado e sintaxe preciosa, ornamentações lingüísticas , a estética do brilho\luxo na atitude de épater le bourgeois”, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho,Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase “o Rio de Janeiro civiliza-se!”), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo mundano, meio jornalístico, pretensamente sofisticado,como apregoado  por   Afrânio Peixoto e sua ‘yese’ de a literatura como “sorriso da sociedade”.
No pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então e aos nefelibatas da linguagem,  tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”. Como realça Nicolau Sevcenko, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se  ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais.
Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então, Lima Barreto  era o anti-acadêmico por excelência. Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes dessa escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido : as idéias contidas no artigo “Amplius!”( publicado originalmente no primeiro número da Floreal , em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e  incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), expressam suas concepções sobre  a arte literária.
E a propósito do Prémodrnismo : Lima, como sua figura literária maior e seu epígono,só confirma a condição,taxativa, de ser este um ciclo efetivo da historiografia literária brasileira,com características e elementos peculiares próprios, ao contrário do que sustentam alguns estudiosos,que o dizem ‘apenas uma extensão[sic] do Realismo”; e contraria a interpretação de Sergio Micceli, que diz ter sido a denominação “inventada” pelos modernistas,com um sentido de ‘diminuir’ e para,isto sim,valorizar e enfatizar o Modernismo,classificando o que o antecedeu de ‘preliminar’. Mas,em outro viés, Lima Barreto, prenunciador,anunciador e antecipador do Modernismo, por via dos elementos precursores aqui apontados, corrobora justamente o quanto o Prémodernismo,,com suas manifestações específicas e marcantes, foi um verdadeiro ciclo e,mais : verdadeiramente ‘preparador do Modernismo – este, iniciando-se portanto nele,bem antes de 1922.[ vale lembrar : 2012, 90 anos do Modernismo]